Gordim era filho da Ciuça Gorda - uma
boleira exímia, macumbeira braba e mãe protetora de deixar o menino só cheio de
manha e astúcia. Pense num bolo! Pensou? Quem come da guloseima dessa mulher
passa três meses babando de não achar mais coisa boa que seja na vida, só o
dela. Não tem Vó Carma, Tia Nilda, Tia Conça, nada, só bota o menino a perder:
quando ele come, come por todos; chega a ficar empanzinado de roliço. Por isso
o menino só tinha uma doença: dor de barriga. Só vivia no amaro-bocão incensado
com sua própria inhaca. Pudera, com uma pança daquelas, dava trabalho encher o
saco sem fundo. Pior quando peitava o Fura-bolos – o magrelo de ruim. Os dois
numa aposta, não sobrava nem pratos ou panelas.
Assim era Gordim: risonho, arteiro:
bastava ele rir, era a graça do engraçado; se era pra fazer, ele se achava o
melhor. Quem não fosse, ele levava; quem tivesse fastio, ele papava por todos. E
se ocupava espaço no tamanho, avalie nos quereres: ele sozinho valia por três,
ou mais. Em tudo o primeiro, só de amostramento. Pense num sujeito espaçoso:
sua soberba abria o risador de qualquer um. Tudo na conta do atrapalho: sua
enrolada levantava a risadas. Sem saída, só vive sorrindo – menino safado.
Apronta e leva a pior; mas não desanima e vira a piada.
Um dia lá, garotada reunida, ele deu
expansão ao seu querer desmedido: brincar de show de talentos. Arrepare só. Ele
próprio se dizia: quem o melhor? Ora, o primeiro tinha de ser ele, o
invencível, o inimitável. Não adiantava quem quisesse o lugar: uma bundada dele
era qualquer petulante em nocaute. Brincasse com ele, findava quem fosse
estatelado no chão. E como ocupava espaço por três, não tinha pra ninguém:
primeiro ele, desse o que fosse. No final, a bem de todos, concordavam.
- Quer brincar do quê, Gordim? -,
perguntou o Maior-de-todos.
- De ser cantor de show de talento! -,
respondeu se autoaplaudindo tal astro das capas de revista das celebridades
todas.
- Uai, sô!?! Desde quando Gordim sabe
cantar? -, inquiriu o Jeguim pra acabar com a festa antes mesmo do ensaio.
- Desde o dia dele tremendo de medo ter
de entreter o Lobisomem Zonzo! -, mangou o Maluquin botando gosto ruim na
munganga.
- O Zonzo? Ora, ora...
Verdade. O Gordim era destemido e implacável
com tudo, menos com o Lobizonzo, de quem ele se escondia todo arisco de
medroso. Falar dele perto do Gordim era o mesmo que gritar La Ursa em tempos de
carnaval, que ele se escondia embaixo da cama de não querer mais nada. Acabava
com a festa dele.
Enquanto isso o Lobizonzo na plateia dava
a maior corda pro Gordim:
- Canta! Canta! Canta! -, era o que sabia
fazer: ficar repetindo uma palavra mais de uma vez no maior dos incentivos. Afinal
era zonzo, né? E Gordim nessa hora se arrependia, queria era se esconder. Mas a
turma agora que botava fogo na lenha pra vê-lo sair dessa.
Então, quisessem ou não, bastava Gordim
querer e só parava de peiticar quando todos concordassem. E conseguia por fim
da força das insistências. Queria brinquedo? Só parava a lamúria com o
conquistado. Pense num bicho pidão de ficar por horas amolegando o pedido de
encher o saco até a paciência se render de atendê-lo.
Era a hora do vamos ver.
Tudo certo e nos conformes, ele fica de
pé exigindo a atenção de todos.
Quando o silêncio de todos atentos, ele
pigarreia, se ajeita todo nos trinques e dana-se a cantar desafinado com um
cotoco de pau encostado no bucho qual viola violada, de olhos fechados sonhando
maior abafo dos sucessos. A vaia come no centro, quando não todos com as mãos
nos ouvidos: quem aguenta tal desarmonia? Não valia nem troféu abacaxi. Ele lá:
duro na queda, impondo seu talento e se amostrando todo ancho. Mais se
esforçava para agradar até que no final do refrão resolveu caprichar com um
solfejo agudo, no fôlego, comprido, demorado, a ponto de abrir a boca, se esgoelar
todo da língua se espichar fora, dar um nó e se enganchar na garganta,
engasgando-o. Entalado de agonia dos olhos quase soltar fora, inquieto e
apavorado, findou levando uns murros nas costas para desengasgar. Foi pior: só
desenganchou quando soltou um pum fedorento e estrondoso de abalar a redondeza.
Pronto, acabou a festa. Não ficou um só
pra remédio, todos picaram a mula pra longe da fedentina. E ele? De mãos dadas
pro ar cantando vitória na maior euforia de campeão. Se não ganhou pelo
talento, ganhou pelo pum. Mas teve um prejuízo: começou a falar fino.
- Tome, desgraçado, quem manda ser
amostrado? -, mangou de ciúmes o Cravo que chegou depois de uma arenga com a
Rosa.
Apesar desse desfecho, uma coisa fica
certa: Gordim é a alegria da patota. Não bastando ser o mais adiantado de
todos, ele se atrapalha e vira a pinoia do momento: provoca as mais soltas gargalhadas.
Não fosse ele, a estória não teria a menor graça.