[...] as crianças são inclinadas de modo especial
a procurar todo e qualquer lugar de trabalho onde visivelmente transcorre a
atividade sobre as coisas. Sentem-se irresistivelmente atraídas pelo resíduo
que surge na construção, no trabalho de jardinagem ou doméstico, na costura ou
na marcenaria. Em produtos residuais reconhecem o rosto que o mundo das coisas
volta exatamente para elas unicamente. Neles, elas menos imitam as obras dos
adultos do que põem materiais de espécie muito diferente, através daquilo que
com eles aprontam no brinquedo, em uma nova, brusca relação entre si.
[...]
Cada pedra que ela encontra,
cada flor colhida, cada borboleta capturada já é para ela princípio de uma
coleção, e tudo que ela possui em geral, constitui para ela uma coleção única.
Nela essa paixão mostra sua verdadeira face, o rigoroso olhar índio, que, nos
antiquários, pesquisadores, bibilômanos, só continua ainda a arder turvado e
maníaco. Mal entra na vida ela é caçador. Caça os espíritos cujo rastro fareja
nas coisas ela gasta anos, no qual seu campo de visão permanece livre de seres
humanos. Para ela tudo se passa como em sonhos: ela não conhece nada de
permanente; tudo lhe acontece pensa ela, vai lhe de encontro, atopela-a. Seus
sonhos de nômade são horas na floresta do sonho. De lá ela arrasta a presa para
casa, para limpá-la, fixá-la, desenfeitiçá-la. Suas gavetas têm de tornar-se
casa de armas e zoológico, museu criminal e cripta. “Arrumar” seria aniquilar [...].
[...]
Pois se a criança não é nenhum Robinson
Crusoé, assim também as crianças não constituem nenhuma comunidade isolada, mas
antes fazem parte do povo e da classe a que pertencem. Da mesma forma, os seus
brinquedos não dão testemunho de uma vida autônoma e segregada, mas são um
diálogo de sinais entre a criança e o povo. Um diálogo de sinais, para cuja
decifração a presente obra oferece um fundamento seguro.
[...]
A essência do brincar não é um “fazer como
se”, mas um “fazer sempre de novo”, transformação da experiência mais comovente
em hábito [...] O hábito entra na vida como brincadeira, e nele, mesmo em suas formas
mais enrijecidas, sobrevive até o final um restinho da brincadeira.
[...]
Demorou
muito tempo até que se desse conta que as crianças não são homens ou mulheres
em dimensões reduzidas – para não falar do tempo que levou até que essa
consciência se impusesse também em relação às bonecas. É sabido que mesmo as
roupas infantis só muito tardiamente se emanciparam das adultas. Foi o século XIX
que levou isso a cabo. Pode parecer que o nosso século tenha dado um passo
adiante e, longe de querer ver nas crianças pequenos homens ou mulheres, reluta
inclusive em aceitá-las como pequenos seres humanos. [...] jamais
são os adultos que executam a correção mais eficaz dos brinquedos – sejam eles
pedagogos, fabricantes ou literatos –, mas as crianças mesmas, no próprio ato
de brincar.
[...]
A saudade que em mim desperta
o jogo das letras prova como foi parte integrante de minha infância. O que
busco nele na verdade, é ela mesma: a infância por inteiro, tal qual sabia
manipular a mão que empurrava as letras no filete, onde se ordenavam como uma palavra.
A mão pode ainda sonhar com essa manipulação, mas nunca mais poderá despertar
para realizá-la de fato. Assim, posso sonhar como no passado aprendi a andar.
Mas isso nada adianta. Hoje sei andar; porém, nunca mais poderei tornar a
aprendê-lo.
[...]
Atrás do cortinado, a própria criança
transforma-se em algo ondulante e branco, converte-se em fantasma. A mesa de
jantar, debaixo da qual ela se pôs de cócoras, a faz transformar-se em ídolo de
madeira em um templo onde as pernas talhadas são as quatro colunas. E atrás de
uma porta, ela própria é porta, incorporou-a como pesada máscara e, feita um
sacerdote-mago, enfeitiçará todas as pessoas que entrarem desprevenidas [...].
REFLEXÕES
SOBRE A CRIANÇA, O BRINQUEDO E A EDUCAÇÃO – O livro Reflexões sobre
a criança, o brinquedo e a educação, do filósofo, sociólogo ensaísta, critico
literário e tradutor judeu alemão, Walter Benjamin (1892-1940), reúne ensaios
escritos entre 1913/32, sobre aspectos da vida universitária, o ensino de
moral, o aprendizado da leitura, a prática do teatro, os brinquedos, jogos,
livros infantis e, ainda, os contrastes entre a educação burguesa e os desafios
de uma pedagogia revolucionária.
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São
Paulo: Summus, 1984.
______.
Infância em Berlim por volta de 1900. In:
Obras escolhidas vol.: 2 -
São Paulo: Brasiliense,
1987.
______. Magia e técnica, arte e política. In:
Obras escolhidas vol.: 1. São Paulo: Brasiliense, 1994.
______.
Rua de mão única, Obras escolhidas II, São Paulo: Brasiliense, 1993.
MARCHI, Rita de
Cássia. Walter Benjamin e a infância: apontamentos impressionistas sobre sua(s)
narrativa(s) a partir de narrativas diversas. Educação, Porto Alegre, v. 34, n.
2, p. 221-229, maio/ago. 2011
SOUZA, Aparecida. A temática da infância sob a visão de
Walter Benjamin. Revista Memento, v. 2,
n. 1, jan.-jun. 2011.