Ilustração de J. Lanzellotti
A
LENDA DO VASO MORTO
Pai Lula apareceu de repente chamando a
meninada com o prefixo de sempre:
Boca de
forno?
Forno!
Furaram
o bolo?
Bolo!
Farão
tudo que o seu mestre mandar?
Faremos!
Aí ele mandou que a gente se acomodasse
direitinho que queria contar uma história. Essa era a melhor hora do dia: ouvir
Pai Lula contar história.
Estava tudo arrumado na oficina dele. Tinha
até uma cortina que dava ideia de que algo iria acontecer. Foi quando ele
escondeu-se lá pra trás e danou-se a mexer nas catevragens cantarolando um
frevo doido que eu nunca tinha ouvido.
A gente se espremia sentados no assoalho,
enquanto ele derrubava e arrumava coisas atrás da cortina.
Daí a pouco ele reapareceu todo organizado
com um chapéu de palha, camisa quadriculada por dentro da calça arregaçada até
a metade da canela e berrando:
Hoje tem
espetáculo?
Tem, sim
senhor!
Agora na
hora da tarde?
Tem, sim
senhor!
Então ele enquadrou-se na frente da cortina e
começou a falar como bom matuto que foi criado no meio dos canaviais.
- Hoje eu vou contar a lenda do vaso morto!
-, e falou assim como para botar o maior temor na gente: arregalando os olhos e
se expressando com um ar de mistério bem escabroso.
- Quando eu era menino -, começou contando
ele do jeito que só ele sabe e falando era desde então muito achegado a chupar
cana no tempo da moagem, porque na entressafra elas eram plantadas e não
deixavam ninguém chupar. Escaranchado num feixe, ele empunhava a peixeira para descascá-la
no picadeiro, que era o local onde estava a filharada do senhor do engenho e
não permitido para os moleques filhos dos caboclos. Só ele tinha esse topete,
aos demais dali era desaforo até se aproximar. Foi correndo na rodagem e
passeando de carro de boi que ele cresceu pelo canavial, até o dia de aprender
a fazer açúcar e cachaça.
Foi que ficamos sabendo que quando a gente
pega a cana e leva pras moendas, ela é todinha machucada pra deixar no parol um
caldo espumoso e esverdeado que descerá pela bica pro assentamento. É aí que a
gente vê as cinco tachas: a primeira é o vaso morto, a que recebe o caldo. As
outras são a caldeira, o caldeirote e as de boca pro cozimento, todas lá
fervendo que só.
Mas o vaso morto além de ser aquele que manda
o caldo pras outras tachas, também é aquele que, depois de transcorrer todas as
demais tachas, o caldo retorna frio e espumoso da depuração, tornando-se o vaso
de noite. A gente pensa que ele tá frio, mas a quentura está lá nas profundeza
dele e de raiva porque o que ele manda pras outras tachas, finda voltando pra
ele.
- Um dia lá - contava pra gente Pai Lula -,
já passava da meia noite...
Vôte! Ele falou com ar de assombração que deu
um arrepio medroso na gente de dar vontade de sair correndo...
- Meeeeeeiiiaaaaaaaaaaa Noooooooooooite! -,
repetia ele metendo medo na gente.
Aí ele contou que estava trabalhando de caldeireiro
e terminando a derradeira meladura, quando resolveu cochilar no tamburete se
estendendo na borda do assentamento. Foi aí que no meio de um cochilo e outro,
timbungo, uma das pernas de Pai Lula se estirou dentro do vaso morto.
- Eita! -, dissemos todos. E ele continuou
dizendo que logo Vó Carma, Tia Nilda, Tia Conça e todos dali, correram pra
saber o que havia acontecido.
- Nada não - dizia Pai Lula -, foi que
escorreguei o pé no vaso morto!
- Vixe! Quemou-se!?!
Logo todos foram cuidar dele e ele dizendo
pra todos e escondendo o gemido que o caldo da tacha estava frio e que não foi
nada. Nadinha mesmo. Mas como ninguém era bobo de deixar aquilo porque não
acreditaram, trataram de rebocar Pai Lula pra cama e encerrar as atividades pra
roncar na madrugada.
- Quando foi no outro dia... -, falou com os
esbugalhados, voz pausada e arrepiante, dizendo que quando ele foi ver a perna,
estava toda cheia de bolhas sobre o funda da pele bem vermelha, mais parecendo
bexiga de gente. Mas isso era o de menos. O pior foi quando se ouviue um zoadeiro
do povo todo correr pro alpendre da boca da fornalha e pro parapeito do paredão
da casa da caldeira:
- O vaso morto tá gemendo! -, e continuou
dizendo que era gente que ajuntava lá e bote tuia de gente nisso, tudo ouvindo
o vaso gemer que só.
- É o senhor de engenho que vai morrer.... -,
disse uma preta velha que apareceu na hora e deixou todos lamentando com o
prenúncio dessa tragédia.
- Coitado, tão jovem, já vai morrer... -,
dizia um capataz encostado no forno da louça.
- Nada disso! -, apareceu no de repente da
história dele, um outro sabido de outras bandas que gritou: - Se o vaso morto
gemeu é porque tem cascalho no fundo, vamos fazer a limpeza amanhã de manhã.
No outro dia, todo mundo estava lá
participando da limpeza do vaso morto na maior festa. Tudo nos trinques, todo
mundo foi pros seus afazeres. Oito dias depois, a gente só via o povo
choramingando baixinho ao redor do caixão do dono de engenho estirado na sala
da casa grande com a mortalha do hábito de São Francisco, acompanhado do
dobrado dos sinos da capelinha com os ruídos das enxadas e pás cavando o buraco
no chão pro sepultamento.
Danou-se! Um arrepio começou da ponta do dedo
mindinho e foi se esticando até o cocuruto, chega futucar o bucho que deu uma
trovejada de quase melar os fundilhos. Foi só a gente olhar um pro outro pra lá
de amedrontados, quando Pai Lula tascou:
Vaso
morto gemeu,
O dono
da casa morreu!
E caiu na maior das gargalhadas e metendo
mais medo ainda na gente. Até que ele se virou, abriu a cortina e trouxe um
bocado de coisas pro lanche da gente: fatias de bolo e de doce, ponche de siriguela,
biscoitos e caldo de cana. Aí a gente esqueceu o medo e caiu na pulada de frevo
de Pai Lula.
FONTES:
BRANDÃO, Alfredo. Crônicas alagoanas. Maceió:
Casa ramalho, 1939.
DANTAS, Paulo (Org.). Estórias e lendas do
norte e nordeste – Antologia ilustrada do folclore brasileiro. São
Paulo:Edigraf, s/d.
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