RUA DOS CATAVENTOS
II
Dorme, ruazinha.... é tudo escuro....
E os meus passos, quem é que pode
ouvi-los?
Dorme o teu sono sossegado e puro,
Com teus lampiões, com teus jardins
tranquilos...
Dorme... não há ladrões, eu te
asseguro...
Nem guardas para acaso persegui-los...
Na noite alta, como sobre um muro...
As estrelinhas cantam como grilos....
O vento está dormindo na calçada,
O vento enovelou-se como um cão...
Dorme, ruazinha... não há nada...
Só os meus passos... mas tão leves são
Que até parecem, pela madrugada,
Os da minha futura assombração...
XXIV
A ciranda rodava no meio do mundo,
No meio do mundo a ciranda rodava.
E quando a ciranda parava um segundo,
Um grilo, sozinho no mundo, cantava...
Dali a três quadras o mundo acabava.
Dali a três quadras, num valo profundo...
Bem junto com a rua o mundo acabava.
Rodava a ciranda no meio do mundo....
E o Nosso Senhor era ali que morava,
Por trás das estrelas, cuidando o seu
mundo...
E quando a ciranda por fim terminava
E o silêncio, em tudo, era mais profundo,
Nosso Senhor esperava... esperava...
Cofiando as suas barbas de Pedro Segundo.
CANÇÕES
Canção
da primavera
Primavera
cruza o rio
Cruza o
sonho que tu sonhas.
Na
cidade adormecida
Primavera
vem chegando.
Catavento
enlouqueceu,
Ficou
girando, girando.
Em torno
do catavento
Dancemos
todos em bando.
Dancemos
todos, dancemos,
Amadas
mortos, amigos,
Dancemos
todos até
Não mais
saber-se o motivo...
Até que
as paineiras tenham
Por
sobre os muros florido!
Canção
de outono
O outono
toca realejo
No pátio
da minha vida.
Velha
canção, sempre a mesma,
Sob a
vidraça descida...
Tristeza?
Encanto? Desejo?
Como é
possível sabê-lo?
Um gozo
incerto e dorido
De
caricia a contrapelo....
Partir,
ó alma, que dizes?
Colher
as horas, em suma...
Mas os
caminhos do outono
Vão dar
em parte nenhuma!
SAPATO FLORIDO
O poema
Uma
formiguinha atravessa, em diagonal, a página ainda em branco. Mas ele, aquela
noite, não escreveu nada. Para quê? Se por ali já havia passado o frêmito e o
mistério da vida...
Que
haverá no céu?
Se não
houver cadeiras de balanço no céu.... que será da tia Élida, que foi para o
céu?
Mentira?
A
mentira é uma verdade que se esqueceu de acontecer.
ESPELHO MÁGICO
LXIII –
Das falsas posições
Com pele
do leão vestiu-se o burro um dia.
Porém no
seu encalço, a cada instante e hora,
“Olha o
burro! Fiau! Fiau!” gritava a bicharia..;
Tinha o
parvo esquecido as orelhas de fora!
LXVI –
Dos defeitos e das qualidades
Diz o
elefante às rãs que em torno dele saltam:
“Mais
compostura! Ó céus! Que piruetas incríveis!”
Pois são
sempre, nos outros, desprezíveis
As
qualidades que nos faltam...
MÁRIO QUINTANA – O poeta, tradutor e jornalista brasileiro
Mário Quintana (1906-1994) é um dos maiores poetas da Literatura Brasileira. Veja
mais aqui.
REFERÊNCIAS
QUINTANA, Mario. Poesias. São Paulo: Globo,
1989.
______. Nova antologia poética. Rio de
Janeiro: Codecri, 1981.