As lendas são a poesia do povo; elas correm
de tribo em tribo, de lar em lar, como a história domestica das ideias e dos
fatos; como o pão bento da instrução familiar.
Entre essas lendas aparecem os contos populares
imortais; em muitos povos já uma legenda de criaturas votadas à vida perpetua
por uma fatalidade qualquer. Sabido é o mito do paganismo grego que mostrava
Prometeu atado ao rochedo do Cáucaso em castigo de seu arrojo contra o céu,
onde se guardavam as chaves da vida. Um abutre a rasgar-lhe as vísceras, o
fígado a renascer à proporção que era devorado, e depois um Hercules,
individualidade meio-ideal, e meio-verdadeira – que o desata das correntes
eternas – tudo isto embeleza a arrojada concepção do grande povo da
antiguidade.
Um apanhado ligeiro de algumas dessas lendas,
vai o leitor contemplar diante de si. Começo por uma balada alemã; o povo
alemão é o primeiro povo para essas concepções fantásticas, como um livro de
seu compatriota Hoffmann. As margens do Reno são uma procissão continuada de
tradições e mitos, em que um espírito profundamente supersticioso se manifesta.
É lá a verdadeira terra da fantasia.
Reza a tradição popular, que um cavalheiro
daquelas regiões era doido pela caça a que se entregava de corpo e alma como o
rei Carlos IX, que não tinha outro mérito além desse, exceto o de fazer matar
huguenotes, doce emprego para um rei imbecil, como era.
Era pois o cavalheiro da lenda um caçador
consumado e tanto que fazia da caça o seu cuidado favorito, único, exclusivo.
Esmolas? Ele não as dava quando na estrada se lhe apresentava a mão descarnada
do mendigo; curvo sobre o seu cavalo fogoso lá ia ele por montes e vales, como
o furacão do inverno; tudo destruía, tudo derrubava, ao pobre lavrador que
gastava tempo e vida nas suas messes; passava pela igreja como pela porta de
uma taverna; nem lá entrava a orar – ao menos pelo descanso de seus
antepassados; o sino que chamava os fiéis à oração não chegava aos ouvidos
ensurdecidos pelo som da corneta; era a raiva da caça. Deus cansou-se com
aquela vida de destruição, e o feriu com sua mão providencial. O castigo caiu
sobre a cabeça desse cavalheiro condenado a vagar pelas florestas da montanha
de Harz, envoltos ele, cavalo e monteiros no turbilhão de uma caça fantástica.
Todas as noites o povo crê ouvir o caçador eterno com toda a sua comitiva em
busca de vitimas na floresta. Não é talvez mais que um efeito de imaginação
esse rumor da montanha produzido pelo sopro de um vento dominante nessa
floresta; mas o povo crê, e não convem destruir as fábulas do povo.
Se é um fato, se é a demonstração de uma
máxima, não podemos aqui discutir; eis ai a tradição que o engenho popular
construiu, e a religião das lendas tem conservado. Há talvez aqui uma bela
análise; talvez uma definição que se compadeça com os destinos do povo. Este
cultivo dos mitos não é, talvez, o aguardar laborioso das verdades eternas?
É o que não sabemos.
REFERÊNCIA
ASSIS,
Machado. Chronias (1859-1888). São Paulo: W.M.Jackson Inc, 1938.
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