O
JACARÉ E A PRINCESA
Luiz Alberto
Machado
Era uma vez um rapaz muito pobre de
marré-marré-derci. Guardava dentro dele o desejo de ter muitas posses e se
tornar alguém na vida. Tudo fazia para alcançar seus intentos e não conseguia.
Procurou estudar, mas a não podia pagar; a escola pública era longe e não tinha
vagas; queria trabalhar, mas não havia empregos. Certo dia ele sonhou com um
velho que lhe dizia que se desejasse ser rico, fosse até um determinado local
distante e lá encontraria uma botija. E que quando encontrasse o seu prêmio, deveria
se tornar um homem bom e que servisse a todos com as suas posses. Essa era a
exigência: que tudo que tivesse servisse para si e para todos. Aí quando
acordou, ficou pensativo e resolveu seguir em busca de realizar o que sonhou. Ele
caminhou léguas e léguas e, no caminho, cada vez que passava em determinado local,
levava uma topada. Dias se seguiram com o mesmo sonho e retornando à caminhada,
nada acontecia, só topadas. A cada topada ele maldizia a vida e tudo. Foi,
então, que resolveu fazer uso da oração da cabra preta e almejar dias melhores
para sua vida. Assim fez: meia noite em ponto e completamente nu numa
encruzilhada, ajoelhou-se e orou. Três dias depois, ele arranjou um emprego e
logo caiu nas graças do patrão. Poucos meses se passaram, não satisfeito com a
vida, foi novamente contemplado à condição de homem de confiança e passou a ser
bem gratificado. Tudo ganhava, mas não se satisfazia, queria mais. À custa de
perseguição e vigilância dos trabalhos mal feitos pelos outros, cresceu mais
ainda de posição, tornando-se o braço direito do empregador. Mais e mais galgou
êxito, mas não encontrava a satisfação que seu coração exigia. Logo conseguiu ganhar
a simpatia da filha do seu chefe, casando-se depois de algum tempo com ela, herdando
tudo após a morte do seu protetor. Estava, então, repleto de riqueza, mas no
seu peito, a felicidade ainda não havia chegado, precisava ainda de muito mais
para ser feliz. Foi quando levou outra topada no lugar que sempre passava,
resolveu investigar melhor a coincidência de toda vez que por ali passava,
relava a venta no chão. Começou a cavar e logo encontrou a botija indicada no
sonho. E tornou-se o homem mais rico da redondeza. Mas dentro dele, apesar da
riqueza, mantinha-se a insatisfação: não era feliz. Desfez o casamento,
abandonou a mulher e filhos e seguiu no mundo buscar a sua felicidade desejada.
E quanto mais tinha, mais queria; quanto mais possuía tudo e todos, mais
implacável se tornava, sempre querendo mais e mais. Até que um dia, resolveu
novamente recorrer à sua oração predileta, qual não foi a sua surpresa: ao concluir
a reza, ele transformou-se num jacaré.
Na outra banda daquelas imediações, havia uma
moça muito bonita que desejava a chegada do seu príncipe encantado e, com isso,
tornar uma princesa. Era muito bonita, deveras. Porém, era muito antipática. Sua
principal satisfação era obrigar aos outros satisfazer os seus desejos e fazer
tudo que mandasse. Por causa dessa sua atitude findou sozinha, amargando sua
infelicidade. Mas ela persistiu e ambicionava alcançar seus intentos, quando
soube da oração da cabra preta e foi, naquela mesma noite, completamente nua
para uma encruzilhada, se ajoelhando e começando a orar. Três dias depois, ela
adquiriu poderes inimagináveis que a fizeram ser temida por tudo e todos. Ela
ordenava na sua ruindade, todos obedeciam com medo de sua fúria vingativa. Ela
exigia comida, comida traziam; queria passeios, todos levavam; tudo que
quisesse, todos atendiam. Aí teve um sonho em que um velho aparecia dizendo que
se ela quisesse se tornar princesa, teria de domar um jacaré. E quando domasse
o animal e se tornasse princesa, ela teria que ser boa e providenciar para que
todos fossem felizes sob o seu comando. Ao acordar do estranho sonho, soube que
por ali um jacaré indomável que aterrorizada as pessoas. Ela, então, convocou
um serviçal e ordenou-lhe que providenciasse um cavaleiro para conquistar o tal
jacaré. Logo o serviçal informou que o seu sonho era se tornar cavaleiro de uma
princesa e lhe cumprir todas as ordens e mando. Ela, então, com desdém pela
petulância e meio que a contra gosto, fez dele um cavaleiro com a missão de
capturar o jacaré.
Pela redondeza havia o boato de que um jacaré
terrível estava atacando a população desavisada. Diziam que muitos foram
comidos pelo bicho faminto. Não se podia falar nele que logo o medo tomava
conta de todos. E todos os dias apareciam narrações de que um jacaré atacara
comendo pescadores, caçadores e passantes da beira do mangue. Ninguém nunca
tinha visto o malquisto, mas sua fama corria solta e se avolumava nas conversas
de esquinas do povinho crédulo. Por causa disso, o lugar passou a ser conhecido
como Jacaré. Quem quisesse passar lá ou se referisse ao local, logo dizia: -
Ah, lá no Jacaré. E assim todos tratavam a localidade pelo nome Jacaré.
O cavaleiro chegou naquelas paragens
procurando saber adonde que se encontrava o tal terrível jacaré. Todos sabiam
dele, mas ninguém sabia onde encontrá-lo. Foi, então, que o cavaleiro logo
arregimentou um monte de gente para caçá-lo, prometendo alta quantia por prêmio
a ser pago pela princesa. O valor pela captura do bicho malvado era grande e
logo acendeu a ambição de todos. E assim foram na caça ao tal jacaré. Noites e
dias e nada de encontrar. Caçaram tudo e todos os lugares da redondeza e nada
dele dar sinal de vida. Certo dia, arranchados na sombra de pé de coqueiro,
avistaram lá em cima, um volume bastante pronunciado que se misturava com as
sombras. Logo deram conta de um jacaré atrepado no alto do coqueiro. E tudo
fizeram até derrubar a árvore e capturar o jacaré. A luta foi acirrada, muita
gente envolvida na luta, até que conseguiram depois de hora de peleja, amarrar
a presa e leva-la para o leito da princesa. Qual não foi a surpresa dela de ver
ali, completamente dominado, a feroz criatura que amedrontava o povo e a
tornaria princesa no lugar. Quando todos se foram, ela se aproximou do bicho e
percebeu que ele não reagia. Olhou nos olhos dele e percebeu que ali havia um
olhar de sofrimento e de ternura. Ela logo pegou afeição pelo animal e começou
a desamarrar os nós e libertar o bicho que passou a conviver com ela no seu
quarto. – Ah, esse o animal que me tornará uma princesa. E agora com a empáfia
do poder, queria dominar o mundo e todas as pessoas viventes. Logo ordenou ao
serviçal-cavalheiro que convocasse o povo do Jacaré para ela editar as novas
ordens e determinar o pagamento do prêmio a todos que capturaram o animal.
Assim fez e o povo reunido à sua espera, apareceu deslumbrantemente linda e
conduzindo o jacaré pela coleira, o que fez com que todos temessem o poder
daquela mulher que dominava sozinha e por uma modesta coleira, um animal tão
brabo e perigoso. Ela, então, determinou que dali por diante aquela localidade
não se chamaria mais Jacaré, mas Recanto da Ilha da Princesa. E que todos
deviam servi-la porque ela se tornara a princesa do lugar, editando leis e
ordens a todos. Fez promessas de melhorar a vida das pessoas como prêmio pela
captura do bicho, e determinou que todos, a partir de então, passariam a morar
em casas melhores, numa localidade mais bonita e mais aprazível. À primeira
vista, tudo se transformou no lugar: o que antes era só fila de casebres passou
a ter casas; o que era terra de barro batido, virou calçamento ; o que era amplo terreno aberto ao vento e ao mundo, passou a ter
um muro fechado para o domínio da princesa. Todos ali passaram a ser seus
súditos e deviam fazer apenas o que ela mandasse. Depois de sua fala todos
ficaram felizes pelas melhorias constatadas e pelas providencias tomadas: agora
tinham casas de alvenaria, ruas calçadas e lugares encimentados, longe da
miséria e do barro batido de outrora.
Os anos se passaram e a princesa se tornara
cada vez mais numa bruxa malvada; o que antes era bonito começou a ficar
triste. Era cobrança de impostos cada vez maiores, ordens e leis sufocantes,
invasão de privacidade, domínio funesto de quem só queria o poder cada vez
mais. A princesa passava das contas, o povo estafado do excessivo trabalho
imposto por ela, não mais vivia: sobreviviam para alimentar a ambição da
princesa má. Cada vez que alguém se rebelava contra as suas ordens, ela mandava
capturar e condenava a virar comida pro jacaré que era mantido faminto para
ameaçar qualquer adversário ou inimigo. O bicho mais se afeiçoara por ela pela
sempre existência de comida. Tendo um dia que ela condenou tanta gente, que a
fome do jacaré não deu vencimento, escapando uns três ou quatro fugitivos. Ela
então condenou o jacaré à morte. E seria executado em praça pública, não
precisava mais dele. Ela era agora a princesa comandante de um exército de
fiéis ao seu dispor para tudo que invocasse ao mando.
A notícia do julgamento e esquartejamento do
jacaré tomou o lugar de susto. Foi então que os fugitivos reuniram o povo e
contou tratar-se de jacaré de óculos, manso, que só devora porque vive cativo e
faminto pela ruindade da princesa. Lembrou eles que só se ouviu falar que o
jacaré atacava, mas ninguém nunca viu quem que foi devorado por ele, que era
lenda, invencionice do povo que acreditava ser o animal ruim. Lembraram mais
que se tratava daquele jovem rapaz ambicioso que encontrou uma botija e
tornou-se rico. Mas como ele não foi um bom rapaz, foi transformado em jacaré e
que estava arrependido, atrepado num pé de coqueiro. Na conversação ficou
observado que antes eles eram pobres, mas viviam em união, um por todos e todos
por um, solidários, amigos e que possuíam um lar. Antes o que se possuía era
dividido e não havia ninguém melhor que ninguém. Não havia muros separando os
seus lares, não havia hora nem dia para que um ajudasse ao outro, para que
todos, apesar da miséria, pudessem dividir o que usufruíam. Havia concórdia. E
o jacaré, apesar de ser temeroso, nunca atacou ninguém dali, ninguém soubera de
que alguém dali que tivesse sido devorado por ele; o jacaré era um temor, mas
não incomodou ninguém, não invadiu o território deles, não se intrometeu na
vida de ninguém. A princesa, não. A princesa chegou, mudou os costumes,
ofereceu benefícios e melhorias, constatando que tudo podiam ter, mas não
tinham nada: tudo era da princesa. Antes, pelo menos, tinham dignidade e a
amizade dos outros. Agora, eram todos inimigos uns dos outros, todos querendo
agradar a princesa que implantou a discórdia, a ciumeira e enredamento. Onde
antes havia amizade solidária, passou a reinar a inveja e o egoísmo. Afinal, se
viram infelizes. No reinado do jacaré, eram pobres, mas se satisfaziam.
Perceberam que agora, não havia satisfação: havia competição. Cada um por si. Todos,
então, concordaram e resolveram salvar o jacaré. E no dia da execução pública,
tramaram a aproximação e quando o carrasco ergueu o machado para decapitar e
esquartejar o animal, o povo invadiu o cadafalso, libertou o jacaré que saiu em
desabalada carreira e destronaram a princesa. Agora o futuro era deles, não
mais de ninguém, mas de todos. Reuniram-se, então, elegeram um representante,
definiram as prioridades e, cada um, começou a exercer o seu papel na
comunidade em nome de todos.
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