APÓS O LÁPIS
Em menino, trem
existe se à margem,
Não qual um
utensílio quando enguiça
Ou parente se
do siso exorbita,
Mas como o que,
por demasia, não cabe
No vernáculo
das coisas meninas,
Nem entre os
mortos do álbum de família;
Existe como um
inteiro almanaque,
Em que se leia
o que a montanha interdita.
E mesmo que do
trem não desmereça
(quando seja
móvel e mercantil)
Sua matéria
dinâmica, escoteira,
Sua prosa
cortante, fala esmeril,
Para o menino
trem existe apenas
Enquanto na
gare, sem zás nem tris,
Descansa suas
engrenagens: um poema
Após o lápis,
essa morte feliz.
O MENINO EM
PROSA
Porque menos
importa a viagem quando
Da locomotiva o
menino aprende
O duelo do
metro com o acidente,
Do comboio
imita a soma e o arranjo,
De com outros
meninos tomar corpo
(maior, embora
menos desenvolto),
E assim
fazer-lhe vermelho reclamo
Nas páginas de
uma ficção de bolso.
Quando de
viagem, como quem o poema
Enfarda nas
horizontais da prosa,
Sem qualquer
quebra, apara ou empena,
À linha o
menino se acomoda
Dir-se-ia que
muda de manuscrito
Para um
capa-dura, muito embora
Seja uma forma
de adiar o menino
Esse traduzi-lo
em outra bitola.
ESCREVER POR
AGULHAS
E se o menino,
na urgência de longes,
Do trem separa,
aparta-se da gare
Para embarcar
um também de horizontes,
Não descura do
carvão, mesmo lápis,
Com que escreve
dias-mapa, cartas-ponte,
Como a palavra
fosse o desembarque
No qual reúne porquês,
quandos e ondes,
Enquanto a infância
manobra e parte.
Nesta escrita, difícil
operar
Senão ao modo
de, como por agulhas,
Sejam as que,
entre a hora e o lugar,
Decidem se a
linha míngua ou desnuda
(ao foguista
cumpre apenas queimar),
Sejam aquelas
que emprega a costura
E de viés
ensinam a mão a chulear
Onde nos punge
o poema, suas rasuras.
LINHAS RIVAIS
Trem é texto
quando encontra desvio
Ou nos
surpreende em meio ao pontilhão,
E da origem as
pernas se desdão
Para o mundo
acomodar neste livro.
Mas texto é
menos trem que o enguiço
De saber que no
verso desembarca
Apenas a prosa
dessas coisas arcas
Com que menino
se salva do olvido.
Seja a prosa
como dormir num trem
E a poseia
quando a aduana sobrem:
Naquela, até o
sonho encontra sua reta,
Uma voz de si
mesma estrangeira
- e como fosse
toda ela suspeita,
A bagagem uma outra
mão desfaz
Mão que vacila
entre linhas rivais.
A MÃO DO PAI
Eis que o
menino admira ter na sua
A mão do pai,
menos porque onde arrua
Desenreda-se
uma inteira Odisseia
Do que por ser
potro testando a rédea.
Também porque
aquela mão, quando avulsa
Para outro
menino os olhos assesta,
O menino que
foi o pai e nele avulta
Ao surpreender
no mínimo suas festas.
De um tapume
sozinho comm suas nódoas,
Da venda onde a
fome se pesa à parte,
De um que se
pendura de alegria e trastes
E outro cuja
fala pijama as horas,
Desses o pai
sabe a fábula e glosa,
Como de posse
do olho de Balzac
Tudo pudesse
demudar em prosa
Para adiar a
morte daquela tarde.
PAI MENOR
Tivesse o filho
dito uma palavra
E aquela seria
uma morte inteira.
Mas como quem
larga coisa enguiçada
E, sem fechar
luto, seu termo aceita,
O menino não
disse trem nem traste,
Apenas olhou o
pai de cima a baixo,
Sem atinar qual
erro de linhagem
Fez dele menor
– não mais que alinhavos.
Da primeira vez
que no filho morre,
Ao pai a morte
semelha um estrepe
- não por doer,
mas porque nela revolve
Quanto há de
menino num corpo em febre.
E dele é menor
o pasmo também
Quando das
demais morre por igual
Pois nessas ele
apenas entretém
Aquela outra,
maiúscula e cabal.
ENVOI
Há de entender
o leitor yanto adiar,
Pois o menino
no adulto demora
Conforme uma
medida que lhe é própria:
Não marca
tempo, nem guarda lugar.
Aponta a morte
como riso fácil
De quem, com o
que foi e o que deveria,
Reúne em si
duas margens e, à revelia,
Publica aqui
outra edição do desastre.
GALO
[...]
Dos galos,
apenas o carijó. Parcimonioso nas cores. Discreto – o que é raro num galo. Quando
parado, uma tela tachista à procura do zero da expressão. Em movimento,
múltiplos dados lançados ao acaso, cintilações num largo turvo, camuflagem
precisa para um mundo preto-e-branco.
VELOCÍPEDE
Fóssil da
infância, velocípede existe em fuga para o vermelho.
De miniatura
viagem, velocípede açula Ulisses dentro.
Com sua frágil
lição da queda, velocípede ensina o silêncio da festa.
Deus ex-machina
do menino, velocípede está em fazer do verbo bicicleta.
ROSTO DE MENINO
Podia retocá-lo
Com o verde
desta tarde,
Com o verbo
deste lápis,
Com o vento na
janela.
Eis o termo da
linhagem:
Monstro ou
borboleta
Arrastando nosso
cadáver.
Há um ricto
Escondido nesta
catástrofe.
O rosto acolhe
uma filiação incerta.
FERNANDO FÁBIO FIORESE FURTADO – O escritor
mineiro Fernando Fábio Fiorese Furtado é autor dos livros Corpo Portátil (2002),
Dicionário Mínimo (2003), Um dia, o trem (2008) e Aconselho-te crueldade
(2010), entre outros. Ele é doutor em Semiologia pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro e professor da Faculdade de Comunicação Social e do Mestrado em
Teoria da Literatura da Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais. Ele
está destacado no Guia de Poesia e no Varejo Sortido.