BRINCARTE

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Sunday, January 19, 2014

FERNANDO FÁBIO FIORESE FURTADO


APÓS O LÁPIS

Em menino, trem existe se à margem,
Não qual um utensílio quando enguiça
Ou parente se do siso exorbita,
Mas como o que, por demasia, não cabe
No vernáculo das coisas meninas,
Nem entre os mortos do álbum de família;
Existe como um inteiro almanaque,
Em que se leia o que a montanha interdita.

E mesmo que do trem não desmereça
(quando seja móvel e mercantil)
Sua matéria dinâmica, escoteira,
Sua prosa cortante, fala esmeril,
Para o menino trem existe apenas
Enquanto na gare, sem zás nem tris,
Descansa suas engrenagens: um poema
Após o lápis, essa morte feliz.

O MENINO EM PROSA

Porque menos importa a viagem quando
Da locomotiva o menino aprende
O duelo do metro com o acidente,
Do comboio imita a soma e o arranjo,
De com outros meninos tomar corpo
(maior, embora menos desenvolto),
E assim fazer-lhe vermelho reclamo
Nas páginas de uma ficção de bolso.

Quando de viagem, como quem o poema
Enfarda nas horizontais da prosa,
Sem qualquer quebra, apara ou empena,
À linha o menino se acomoda
Dir-se-ia que muda de manuscrito
Para um capa-dura, muito embora
Seja uma forma de adiar o menino
Esse traduzi-lo em outra bitola.

ESCREVER POR AGULHAS

E se o menino, na urgência de longes,
Do trem separa, aparta-se da gare
Para embarcar um também de horizontes,
Não descura do carvão, mesmo lápis,
Com que escreve dias-mapa, cartas-ponte,
Como a palavra fosse o desembarque
No qual reúne porquês, quandos e ondes,
Enquanto a infância manobra e parte.

Nesta escrita, difícil operar
Senão ao modo de, como por agulhas,
Sejam as que, entre a hora e o lugar,
Decidem se a linha míngua ou desnuda
(ao foguista cumpre apenas queimar),
Sejam aquelas que emprega a costura
E de viés ensinam a mão a chulear
Onde nos punge o poema, suas rasuras.

LINHAS RIVAIS

Trem é texto quando encontra desvio
Ou nos surpreende em meio ao pontilhão,
E da origem as pernas se desdão
Para o mundo acomodar neste livro.
Mas texto é menos trem que o enguiço
De saber que no verso desembarca
Apenas a prosa dessas coisas arcas
Com que menino se salva do olvido.

Seja a prosa como dormir num trem
E a poseia quando a aduana sobrem:
Naquela, até o sonho encontra sua reta,
Uma voz de si mesma estrangeira
- e como fosse toda ela suspeita,
A bagagem uma outra mão desfaz
Mão que vacila entre linhas rivais.

A MÃO DO PAI

Eis que o menino admira ter na sua
A mão do pai, menos porque onde arrua
Desenreda-se uma inteira Odisseia
Do que por ser potro testando a rédea.
Também porque aquela mão, quando avulsa
Para outro menino os olhos assesta,
O menino que foi o pai e nele avulta
Ao surpreender no mínimo suas festas.

De um tapume sozinho comm suas nódoas,
Da venda onde a fome se pesa à parte,
De um que se pendura de alegria e trastes
E outro cuja fala pijama as horas,
Desses o pai sabe a fábula e glosa,
Como de posse do olho de Balzac
Tudo pudesse demudar em prosa
Para adiar a morte daquela tarde.

PAI MENOR

Tivesse o filho dito uma palavra
E aquela seria uma morte inteira.
Mas como quem larga coisa enguiçada
E, sem fechar luto, seu termo aceita,
O menino não disse trem nem traste,
Apenas olhou o pai de cima a baixo,
Sem atinar qual erro de linhagem
Fez dele menor – não mais que alinhavos.

Da primeira vez que no filho morre,
Ao pai a morte semelha um estrepe
- não por doer, mas porque nela revolve
Quanto há de menino num corpo em febre.
E dele é menor o pasmo também
Quando das demais morre por igual
Pois nessas ele apenas entretém
Aquela outra, maiúscula e cabal.

ENVOI

Há de entender o leitor yanto adiar,
Pois o menino no adulto demora
Conforme uma medida que lhe é própria:
Não marca tempo, nem guarda lugar.
Aponta a morte como riso fácil
De quem, com o que foi e o que deveria,
Reúne em si duas margens e, à revelia,
Publica aqui outra edição do desastre.



GALO

[...]
Dos galos, apenas o carijó. Parcimonioso nas cores. Discreto – o que é raro num galo. Quando parado, uma tela tachista à procura do zero da expressão. Em movimento, múltiplos dados lançados ao acaso, cintilações num largo turvo, camuflagem precisa para um mundo preto-e-branco.

VELOCÍPEDE

Fóssil da infância, velocípede existe em fuga para o vermelho.

De miniatura viagem, velocípede açula Ulisses dentro.

Com sua frágil lição da queda, velocípede ensina o silêncio da festa.

Deus ex-machina do menino, velocípede está em fazer do verbo bicicleta.


ROSTO DE MENINO

Podia retocá-lo
Com o verde desta tarde,
Com o verbo deste lápis,
Com o vento na janela.

Eis o termo da linhagem:
Monstro ou borboleta
Arrastando nosso cadáver.

Há um ricto
Escondido nesta catástrofe.

O rosto acolhe uma filiação incerta.

FERNANDO FÁBIO FIORESE FURTADO – O escritor mineiro Fernando Fábio Fiorese Furtado é autor dos livros Corpo Portátil (2002), Dicionário Mínimo (2003), Um dia, o trem (2008) e Aconselho-te crueldade (2010), entre outros. Ele é doutor em Semiologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e professor da Faculdade de Comunicação Social e do Mestrado em Teoria da Literatura da Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais. Ele está destacado no Guia de Poesia  e no Varejo Sortido.