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Monday, September 15, 2008

LENDAS POÉTICAS: A LENDA DO AMAZONAS



A LENDA DO AMAZONAS

Fagundes Varela

Quando vestido de brilhante púrpura
Surgia o sol no céu,
Deixei a medo os majestosos píncaros
Onde habita o condor,
E guardando do frio os seios trêmulos
Nas dobras do brial,
Como errante cegonha ou pomba tímida,
Às planícies voei.
Em meus cabelos ciciavam, lânguidos,
Os sopros da manhã,
Clarões e névoas, iriantes círculos,
Giravam-me ao redor...
Mas sobre o leito de tecidos flácidos,
Inclinada a sorrir,
Deixava-me rolar aos doces cânticos
Dos gênios do arrebol.
Já perdendo de vista os Andes túrbidos
Sobre rochas pousei...
Sobre rochas pousei... as virgens cândidas,
Louras filhas do ar,
Trocaram-me do corpo a etérea túnica
Por manto de cristal,
Cantaram-me ao ouvido um hino mágico
Que falava de amor,
Tão meigo e triste como a voz da América
Em seu berço de luz.
Cingiram-me a cabeça dos mais límpidos
Diamantes e rubins;
Das borboletas leves e translúcidas
Do verde Penamá
Formaram-me sutil, brilhante séquito;
Aspergeram-me os pés
Do perfume das flores mais balsâmicas
Das savanas sem fim,
E, me apontando da floresta os dédalos
Pejados de frescor
Deram-me abraços mil, ardentes ósculos,
E deixaram-me só...
E deixaram-me só; nos vastos âmbitos
Sem rumo, me perdi,
Meus olhos inundaram-se de lágrimas,
Quis aos montes voltar...
Mas o treno saudoso dos espíritos
À minh’alma falou,
E ao grato acento dessas queixas místicas
De novo me alentei.
Desci das brenhas pensativa, atônita,
Olhos fitos além,
Meu manto sobre a rocha um surdo estrépido
Desprendia ao roçar...
E meus cabelos borrifados, úmidos
De sereno estival,
Salpicavam, ao sol, de infindas pérolas
O desnudado chão.
Os velhos cedros com seus ramos ásperos,
Saudaram-me ao passar,
Os cantores das matas, em miríades,
Os coqueirais senis
Bradaram numa voz: - oh! filha esplêndida
Da eterna criação,
Corre, que ao lado do soberbo tálamo
Por ti suspira o mar!...
Ao meio-dia, extenuada, mórbida
Pelo intenso calor,
De um mundo ignoto sob a imensa cúpula
Solitária me achei.
Argênteas fontes, sonorosos zéfiros,
Rumores divinais,
Grutas de sombra e de frescura próvidas,
Multicores dosséis,
A cujo abrigo um turbilhão de pássaros
Cruzava a trinar
Um não sei quê de vago e melancólico,
De infinito talvez,
Acenderam-me ao seio a chama insólita
De estranha sensação!
Sentei-me ao lado de um rochedo côncavo
E procurei dormir...
E procurei dormir; - as plagas túmidas,
O indizível amor
Que transudava dos sussurros épicos
Dos sombrios pinhais,
Em cujas grimpas ramalhavam séculos,
Dormia a tradição;
Da rola do deserto as flébeis súplicas,
A tênue, frouxa luz
Coando entre os rasgados espiráculos
Desse zimbório audaz
Por mil colunas desmarcadas, ríspidas,
Sustentado ante o céu,
Vedaram-me o repouso, e a mente estática.
Em santa reflexão
Senti volver-se as cenas de outras épocas.
Ah! que tudo passou!
Como o sol era belo e a terra lúcida!
Como era doce a paz!
Da família indiana em noite plácida
Junto ao fogo a dançar!
Como era calmo e belo e vivo o júbilo
Das filhas de Tupã
Depondo junto ao fogo os anchos cântaros
E atrás dos colibris
Correndo alegres nos relvosos páramos!
E a voz do pescador
Sobre as águas plangentes e diáfanas
De ameno ribeirão!
E o rápido silvar das setas rápidas
Os urros do jaguar,
A volta da caçada, os hinos férvidos
Nos festins anuais!
Tudo findou-se! A mão cruel, mortífera,
De uma idade feroz
Tantas glórias varreu, e nem um dístico
Deixou no chão sequer!
Apenas no deserto ermos sarcófagos
Sem mais cinzas, nem pó,
Negras imagens de figuras híbridas,
Soltas aqui e ali,
Resistem do destino ao rijo látego!...
Mas das eras de então
Nada revelam no silêncio gélido!...
Meu Deus e meu Senhor!
Eu que vi construir-se o imenso pórtico
Do edifício imortal,
Donde ao vivo luzir dos astros fúlgidos
Todo o ser rebentou,
Eu que pelas planícies inda cálidas
De vosso bafejar,
Vi deslizar o Tigre, o Eufrates célebre,
O sagrado Jordão...
Eu sem nome, sem glórias e sem pátria,
Entre os densos cocais,
Ia, bem como as gerações sem número,
Absorta escutar
Dos santos querubins a voz melódica!...
Eu que pobre e sem guia,
Pobre e sem guia nos desertos áridos,
Teu poder, grande Deus,
Pressentia no ar, no céu, nos átomos...
Vi também sob o sol
Afogarem-se os orbes no crepúsculo
De uma noite fatal,
E à lareira da vida erguer-se impávido
O nada aterrador!
Vi num combate pavoroso e tétrico,
Torva, escura epopéia,
O fantasma do estrago, a morte esquálida
Vencer a criação,
Devorar-lhe sem penas as quentes vísceras,
Dilacerar sem dó
Da madre natureza as fibras íntimas!
Vi à luz dos fuzis,
Do abutre da tormenta a insana cólera
A floresta cair;
Vi negras feras e serpentes pérfidas,
Demônios de furor,
Alastrarem a terra de cadáveres
De pobres animais;
E deste solo de imundícias lúbrico,
Também vi se elevar
A própria vida de destroços pútridos!...
Meu Deus e meu Senhor,
O que diz esta lei crua e fatídica?...
Sobre o vale da dor,
Sobre o vale da dor mirando as nuvens,
Cismando no porvir,
Eu também moça sinto-me decrépita!
Vê-me a aurora nascer,
Mas ouve a noite meus cantares fúnebres!
A alvorada outra vez
Das cinzas de meus restos inda tépidas
Rediviva me vê!...
Eu murmurava assim triste e perplexa
Cortando a solidão...
As estrelas surgiam belas, nítidas
No céu de puro anil,
O bando vagabundo das lucíolas,
Rastejando os pauís
Derramavam clarões débeis e fátuos
Nas plantas ao redor,
Línguas de fogo verde-azul fosfórico
Cruzavam-se no ar...
A terra e os astros num sorrir recíproco
Pareciam se unir,
Uma para beijar o azul sidéreo,
Outros para verter
No seio que sofre um doce bálsamo.
A branca lua
Pura se erguia na celeste abóbada,
Tudo era paz e amor,
Vozes e saudações, hinos angélicos!
Um tênue, langue véu
Senti passar-me pelos olhos ávidos;
Um perfume feliz
Ungiu-me a fronte de venturas ébria,
Pensei adormecer!
Mas ah! Quando de novo abri as pálpebras,
Reclinado a meus pés,
Coroado de espumas e chamas vívidas,
Prostrado estava o Mar.
Como a noite era bela e a terra lúcida!

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