BRINCARTE

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Friday, April 04, 2014

AS MEMÓRIAS INVENTADAS DE MANOEL DE BARROS




BRINCADEIRAS

No quintal a gente gostava de brincar com palavras mais do que bicicleta. Principalmente
porque ninguém possuía bicicleta.  A gente brincava de palavras descomparadas.  Tipo assim:
O céu tem três letras
O sol tem três letras
O inseto é maior.
O que parecia um despropósito
Para nós não era despropósito.

SOBRE SUCATAS

[...] Isto porque a gente havia que fabricar os nossos brinquedos: eram boizinhos de osso, bolas de meia, automóveis de lata. Também a gente fazia de conta que sapo é boi de sela e viajava de sapo. Outra era ouvir nas conchas as origens do mundo...

O APANHADOR DE DESPERDÍCIOS

Uso a palavra para compor os meus silêncios.
Não gosto das palavras fatigadas de informar.
Dou mais respeito às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas.
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.

ACHADOUROS

Mas eu estava a pensar em achadouros de infâncias. Se a gente cavar um buraco ao pé da goiabeira do quintal, lá estará um guri ensaiando subir na goiabeira. Se a gente cavar um buraco ao pé do galinheiro, lá estará um guri tentando agarrar no rabo de uma lagartixa. Sou hoje um caçador de achadouros de infância. Vou meio dementado e enxada às costas a cavar no meu quintal vestígios dos meninos que fomos.

Acho que o quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade. A gente só descobre isso depois de grande. A gente descobre que o tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que temos com as coisas. Há de ser como acontece com o amor. Assim, as pedrinhas do nosso quintal são sempre maiores do que as outras pedras do mundo. Justo pelo motivo da intimidade.

No aeroporto o menino perguntou:
- E se o avião tropicar num passarinho?
O pai ficou torto e não respondeu.
O menino perguntou de novo:
- E se o avião tropicar num passarinho triste?
A mãe teve ternuras e pensou:
Será que os absurdos não são as maiores virtudes da poesia?
Será que os despropósitos não são mais
carregados de poesia do que o bom senso?
Ao sair do sufoco o pai refletiu:
Com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças.
E ficou sendo.

TUDO O QUE NÃO INVENTO É FALSO

Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação. Porque se a gente fala a  partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore.

Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas (...) Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e comunhão com ela. Era o menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. O menino e o rio. Era o menino e as árvores.

OBRAR

Naquele outono, de tarde, ao pé da roseira de minha
avó, eu obrei.
Minha avó não ralhou nem.
Obrar não era construir casa ou fazer obra de arte.
Esse verbo tinha um dom diferente.
Obrar seria o mesmo que cacarar.
Sei que o verbo cacarar se aplica mais a passarinhos
Os passarinhos cacaram nas folhas nos postes nas pedras do rio
nas casas.
Eú só obrei no pé da roseira da minha avó.
Mas ela não ralhou nem.
Ela disse que as roseiras estavam carecendo de esterco orgânico.
E que as obras trazem força e beleza às flores.
Por isso, para ajudar, andei a fazer obra nos canteiros da horta.
Eu só queria dar força às beterrabas e aos tomates.
A vó então quis aproveitar o feito para ensinar que o cago não é uma
coisa desprezível.
Eu tinha vontade de rir porque a vó contrariava os
ensinos do pai.
Minha avó, ela era transgressora.
No propósito ela me disse que até as mariposas gostavam
de roçar nas obras verdes.
Entendi que obras verdes seriam aquelas feitas no dia.
Daí que também a vó me ensinou a não desprezar as coisas
Desprezíveis
E nem os seres desprezados.

Que hei de fazer se de repente a manhã voltar?
Que hei de fazer?
— Dormir, talvez chorar.

Eu tenho um ermo enorme dentro do olho. Por motivo do
ermo não fui um menino peralta. Agora tenho saudade do que não fui. Acho que o que eu faço agora é o que não pude fazer na infância.

MANOEL DE BARROS – O poeta, advogado e fazendeiro Manoel de Barros, nasceu em Cuiabá, em 1916, é um dos mais admiráveis poetas da atualidade no Brasil e no planeta. É autor de inúmeras obras, destacamos o seu Memórias Inventadas.

REFERÊNCIAS
BARROS, Manoel. Memórias Inventadas: A infância. São Paulo, Planeta, 2003.