BRINCADEIRAS
No
quintal a gente gostava de brincar com palavras mais do que bicicleta.
Principalmente
porque
ninguém possuía bicicleta. A gente
brincava de palavras descomparadas. Tipo
assim:
O céu tem
três letras
O sol tem
três letras
O inseto
é maior.
O que
parecia um despropósito
Para nós não era despropósito.
SOBRE
SUCATAS
[...] Isto porque a
gente havia que fabricar os nossos brinquedos: eram boizinhos de osso, bolas de
meia, automóveis de lata. Também a gente fazia de conta que sapo é boi de sela
e viajava de sapo. Outra era ouvir nas conchas as origens do mundo...
O
APANHADOR DE DESPERDÍCIOS
Uso a
palavra para compor os meus silêncios.
Não gosto
das palavras fatigadas de informar.
Dou mais
respeito às que vivem de barriga no chão
tipo água
pedra sapo.
Entendo
bem o sotaque das águas.
Dou
respeito às coisas desimportantes
e aos
seres desimportantes.
Prezo
insetos mais que aviões.
Prezo a
velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
ACHADOUROS
Mas eu estava a
pensar em achadouros de infâncias. Se a gente cavar um buraco ao pé da
goiabeira do quintal, lá estará um guri ensaiando subir na goiabeira. Se a
gente cavar um buraco ao pé do galinheiro, lá estará um guri tentando agarrar
no rabo de uma lagartixa. Sou hoje um caçador de achadouros de infância. Vou
meio dementado e enxada às costas a cavar no meu quintal vestígios dos meninos
que fomos.
Acho que
o quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade. A gente só descobre
isso depois de grande. A gente descobre que o tamanho das coisas há que ser
medido pela intimidade que temos com as coisas. Há de ser como acontece com o
amor. Assim, as pedrinhas do nosso quintal são sempre maiores do que as outras
pedras do mundo. Justo pelo motivo da intimidade.
No
aeroporto o menino perguntou:
- E se o
avião tropicar num passarinho?
O pai
ficou torto e não respondeu.
O menino
perguntou de novo:
- E se o
avião tropicar num passarinho triste?
A mãe
teve ternuras e pensou:
Será que
os absurdos não são as maiores virtudes da poesia?
Será que
os despropósitos não são mais
carregados
de poesia do que o bom senso?
Ao sair
do sufoco o pai refletiu:
Com
certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças.
E ficou sendo.
TUDO
O QUE NÃO INVENTO É FALSO
Cresci
brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos.
Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação. Porque se a gente fala
a partir de ser criança, a gente faz
comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro
e sua árvore.
Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e
oblíqua das coisas (...) Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido
criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e comunhão com
ela. Era o menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. O menino e o rio. Era o
menino e as árvores.
OBRAR
Naquele outono, de tarde, ao pé da
roseira de minha
avó, eu obrei.
Minha avó não ralhou nem.
Obrar não era construir casa ou fazer
obra de arte.
Esse verbo tinha um dom diferente.
Obrar seria o mesmo que cacarar.
Sei que o verbo cacarar se aplica mais a
passarinhos
Os passarinhos cacaram nas folhas nos
postes nas pedras do rio
nas casas.
Eú só obrei no pé da roseira da minha
avó.
Mas ela não ralhou nem.
Ela disse que as roseiras estavam
carecendo de esterco orgânico.
E que as obras trazem força e beleza às
flores.
Por isso, para ajudar, andei a fazer obra
nos canteiros da horta.
Eu só queria dar força às beterrabas e
aos tomates.
A vó então quis aproveitar o feito para
ensinar que o cago não é uma
coisa desprezível.
Eu tinha vontade de rir porque a vó
contrariava os
ensinos do pai.
Minha avó, ela era transgressora.
No propósito ela me disse que até as
mariposas gostavam
de roçar nas obras verdes.
Entendi que obras verdes seriam aquelas
feitas no dia.
Daí que também a vó me ensinou a não
desprezar as coisas
Desprezíveis
E nem os seres desprezados.
Que hei de fazer se de repente a manhã voltar?
Que hei de fazer?
— Dormir, talvez chorar.
Eu tenho um ermo enorme dentro do olho. Por motivo do
ermo não fui um menino peralta. Agora tenho saudade do que não fui. Acho que o que eu faço agora é o que não pude fazer na infância.
ermo não fui um menino peralta. Agora tenho saudade do que não fui. Acho que o que eu faço agora é o que não pude fazer na infância.
MANOEL DE BARROS – O poeta, advogado e fazendeiro Manoel de
Barros, nasceu em Cuiabá, em 1916, é um dos mais admiráveis poetas da
atualidade no Brasil e no planeta. É autor de inúmeras obras, destacamos o seu Memórias
Inventadas.
REFERÊNCIAS
BARROS, Manoel. Memórias Inventadas: A infância. São Paulo,
Planeta, 2003.