Saturday, April 30, 2022

A LITERATURA DE CLARICE LISPECTOR

 

 

“NÃO ESMAGUEM AS PALAVRAS NAS ENTRELINHAS”: A OBRA LITERÁRIA DE CLARICE LISPECTOR PARA A INFÂNCIA – Por Graça Lins. – RESUMO: A obra de Clarice Lispector é fonte inesgotável de pesquisas, estudos, interpretações, artigos, teses e inúmeros eventos acadêmicos. Trata-se de uma escritora que sempre esteve no palco de abordagens das grandes linhas do conhecimento, com especialidade, a Literatura e a Psicanálise. Clarice envolve o leitor com o mesmo encantamento diante das múltiplas leituras que são realizadas sobre a sua obra, quer sejam dirigidas ao público infantil ou adulto. Este trabalho surgiu, inicialmente, de uma inquietação sobre o fato de perceber que sua obra raramente é indicada pelas escolas privadas para seus alunos, e nem sempre são adquiridos pelos grandes programas governamentais de compra de livros encaminhados às escolas públicas. Seria desconhecimento de sua obra dedicada ao público infantil? Ou ausência de práticas de leitura literária em oficinas e mediação de leitura com crianças e adolescentes? As abordagens que definimos buscam, portanto, indicar caminhos para essas práticas com foco na “escuta” do texto e do “leitor”, assim como a própria Clarice nos sugere nas obras que analisamos. Para o presente trabalho foram selecionadas duas obras: O mistério do coelho pensante e Quase de verdade para exemplificarem os estudos sobre o conceito de “escuta do texto”, através de duas abordagens que iluminam a leitura dos referidos livros: As considerações de Cecília Bajour (2012), em seu livro Ouvir nas entrelinhas: o valor da escuta nas práticas de leitura, na perspectiva da leitura literária. No segundo momento, discutiremos o conceito de “escuta do Texto”, pelo viéis de uma leitura psicanalítica a partir dos estudos de Danny A. Kanaan (2002), especialmente em seu livro Escuta e subjetivação: a escritura de pertencimento de Clarice Lispector. Palavras-chave: Literatura. Psicanálise. Mediação de Leitura. Clarice Lispector. INTRODUÇÃO – Falava em língua de ave e de criança / Sentia mais prazer de brincar com as palavras / do que pensar com elas. [...] Aprendera [...] que a palavra tem que chegar ao grau de brinquedo. / Poeminha em língua de brincar... Manoel de Barros. Para iniciar este trabalho instigante e prazeroso sobre a escritora Clarice Lispector, definimos como tema a “escuta do texto”, de duas narrativas ao público infantil: O mistério do coelho pensante (1967) e Quase de verdade (1078). Além das obras citadas, a autora também escreveu para o mesmo público: A mulher que matou os peixes (1969), A vida íntima de Laura (1973) e Como nascem as estrelas (reconto de doze lendas brasileiras), publicado em 1987. A perspectiva de um olhar para Clarice, enquanto mediadora da leitura de seus próprios textos, conduziu-nos a uma intersecção entre o leitor infantil e uma Clarice que conta histórias, com exato domínio da linguagem e do universo da criança. Este trabalho busca mostrar que as marcas linguísticas da oralidade, expressões denotativas do universo da criança, recursos estilísticos no uso de onomatopeias, sugestões de brincadeiras e adivinhas, informalidade nas falas dos diálogos, conteúdos que estão presentes em suas obras de Literatura Infantil, configuram-se como estratégias utilizadas pela autora com a nítida intenção de aproximar o leitor infantil de sua obra, enquanto mediadora de leitura. A leitura analítica dos livros Quase de verdade e O mistério do coelho pensante serve de suporte para confirmar, através da análise, que o discurso de Clarice aproxima-se da figura de uma “contadora de histórias”, ao utilizar marcas linguísticas da oralidade e se colocar inteiramente à vontade para criar e recriar ideias ao longo das narrativas, convidando o leitora para partilhar das entrelinhas, numa interlocução rica com um imaginário fecundo e brincante. Para consolidar essas observações, buscamos aporte teórico de Cecília Bajour (2012) e Danny Kanann (2002) no que se refere à “escuta do texto”, uma vez que a mediação da leitura é visível no convite que a autora faz à criança para compartilhar, apreciar e identificar nas entrelinhas o desenvolvimento do enredo das histórias. LIVROS INFANTIS DE CLARICE: UMA “LEGIÃO ESTRANGEIRA” NO PERCURSO DA LITERATURA INFANTOJUVENIL BRASILEIRA – Os livros de Clarice Lispector para a infância surgem quando um dos seus filhos lhe pede que escreva um livro de história. Posteriormente, ela comenta, em entrevista, que “O adulto é triste e solitário. A criança tem a fantasia solta”. E complementava que era bem mais fácil escrever para crianças do que para adultos, pois teria que se comunicar com o que havia de mais secreto em si mesma. Nas décadas de 20 e 40, as obras infantis privilegiavam o espaço rural e, a exemplo de Lobato, outros autores também contextualizaram suas obras no espaço do campo, como é o caso de Viriato Correia em Cazuza, José Lins do Rego em Histórias da velha Totônia e Graciliano Ramos em Histórias de Alexandre. Sabe-se que, a obra literária de Clarice Lispector inquietou a crítica literária desde a década de 40, contudo só a partir da década de 60 a autora dedica-se ao público infantil. Na década de 50, as obras passam a projetar o meio rural, como como espaço de visita e não da ação das protagonistas, uma vez que se pretendia mostrar um Brasil urbano e progressista, a exemplo de A ilha perdida, de Maria José Dupré, que ainda hoje consta nas listas de indicação das escolas. Entretanto, esse ideário progressista encobre a presença estrangeira, sobretudo norte-americana, que reproduz uma ideologia comprometida com a camada dominante. Ainda nessa década, ocorrem mudanças na vida cultural, reivindicações de uma arte engajada que representasse os problemas sociais, mas a Literatura Infantil ainda não se envolve com essas questões, nem mesmo com a recuperação de uma linguagem literária mais acessível ao público infantil. Foi no contexto dos anos 60 que surgiram as primeiras obras de Clarice dedicadas ao público infantil. Nesse período, o Estado investe numa política cultural que valoriza autores e obras, ou seja, a instauração do capitalismo moderno: patrocínio, coedições, e destinação de verbas para as publicações. Quando houve a instauração de um governo estabelecido pelo golpe de 64 com seu projeto político e econômico, ocorreu a modernização da indústria e então, a atualização do livro, com boa apresentação física, incentivo à propaganda, distribuição maciça de livros, mas, em contrapartida, a Literatura sofre num contexto de censura política e ideológica intensa. Assim, há uma intervenção no processo criativo do escritor, e em nome de uma destinação pedagógica exigia-se glossários e inclusão de perguntas fechadas em fichas de leitura. A compra de livros era patrocinada pelo Estado, mas a leitura era um recurso de inculcação de valores, comportamentos e atitudes. Daí a literatura infantil era usada como “porta-voz”. Nesse contexto, Clarice publica seus primeiros livros dedicados à infância, com a intenção de que sejam lidos como fonte de fruição e prazer, e não uma literatura utilitária e pedagogizante. Em suas obras para a infância há uma preocupação com o lúdico, o humor, o poético, a estética e, ao tematizar as questões pessoais dos personagens, geralmente protagonistas animais domésticos que estimulam pequenos leitoras à reflexão e à crítica. Só nas próximas décadas, autores como Ruth Rocha, Ana Maria Machado e João Carlos Marinho ousam discutir em suas obras o abuso do poder totalitário a exemplo da série O reizinho mandão, O rei que não sabia de nada, o que os olhos não veem (Ruth Rocha), História meio ao contrário (Ana Maria Machado), O gênio do crime (João Carlos Marinho), entre outros (abordando) que abordam a mesma temática. DOIS PEQUENOS-GRANDES PERSONAGENS: UM COELHO E UM CACHORRO – Em seus livros dedicados ao leitor infantil é visível uma Clarice voltada aos interesses da criança, onde não há espaço para a angústia, a introspecção e a verborragia incontrolada, tão presentes em sua narrativa para o adulto. Assim, distancia-se de seus propósitos estilísticos presentes nas narrativas dirigidas a esse público, quando se apresente como um sujeito sem linguagem e incapaz de tratar sobre o seu modo de ser, enigmática e impenetrável. Em obras como Água viva, A cidade situada e, sobretudo, em A paixão segundo GH, a estética clariceana expressa uma forma de incomunicabilidade da sua intimidade, sentimento presente na ação dos personagens que confirmam essa falta de superação e comportam-se como se soubessem demais sobre a vida e ao mesmo tempo fossem incapazes de traduzia a angústia de viver. E, dessa forma, representa ficcionalmente a falta de linguagem e a linguagem da falta, a exemplo do fragmento de A paixão segundo GH: estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi [...] Não confio no que me aconteceu. A isso prefiro chamar desorganização, pois não quero me confirmar no que vivi – na confirmação de mim eu perderia o mundo como eu o tinha, e sei que não tenho capacidade para outro (LISPECTOR, 2009, p. 9). Em sua obra para adulto há uma densidade filosófica que não está presente nas obras para a criança, uma vez que apresenta uma escrita divertida, como um jogo de faz de conta que envolve o leitor infantil, diferente da escritora que expõe um sofrimento avassalador por não encontrar na linguagem como expressar a angústia interior, em seus textos dirigidos ao leitor adulto. Nas obras para a infância convida o adulto para desfrutar das histórias, até mesmo como mediador de leitura, sugerindo que realize complementações orais implícitas nas entrelinhas para melhor interatividade com a criança, ou seja, valoriza a presença do adulto na condução ora da narrativa, como percebemos no paratexto da apresentação do livro O mistério do coelho pensante: Como a história foi escrita para exclusivo uso domestico, deixei todas as entrelinhas para as explicações orais. Peço desculpas a pais e mães, tios e tias e avós, pela contribuição forçada que serão obrigados a dar. Mas pelo menos posso garantir por experiência própria, que a parte oral desta história é o melhor dela (LISPECTOR, 1999, p. 1). Nessa obra, as marcas linguísticas enunciam uma referência subjacente aos contos de fadas, como ao conto João e Maria, ao nomear o coelho, usando o diminutivo Joãozinho e, na sequência narrativa, o coelho é preso numa casinhola de grades estreitas, assim como o menino, personagem do referido conto, foi preso pela bruxa. O coelho também realiza, ao longo da história, uma série de espertezas que remontam ao coelho do conto Alice no país das maravilhas, trata-se de um coelho que pensa a cada momento que mexe o focinho, mas não pode pensar além do que a sua natureza animal permite. Daí a narrativa apresenta mistérios a desvendar, oferecendo ao leitor várias hipóteses como possibilidades interpretativas sobre o comportamento, por vezes humanizado do coelho, como nas expressões: “lembrou-se de fugir cada vez que faltasse comida na casinhola”, “Mas ele sentia uma saudade muito grande de fugir”, “É porque ele compreende as coisas com o nariz” (LISPECTOR, 1999, s/p). A partir da constituição do personagem coelho e sua forma de pensar o mundo. Clarice propõe ao leitor infantil mistérios a desvendar ao longo da narrativa, lançando ao leitor indagações do tipo: “Que é que você acha que Joãozinho fazia quando fugia?”. Ela mesma, entre numa espécie de jogo de adivinhas, convidando o leitor a se envolver com os mistérios em busca de uma solução. O coelho, embora sendo um animal frágil, conseguia levantar uma tampa de ferro e fugir da gaiola sempre que desejava. A narrativa propõe hipóteses para essa fuga frequente, utilizando expressões que aguçam a curiosidade do leitor: Às vezes penso que fugia para ver a namorada dele... Acho também que Joãozinho fugia porque cada vez ele tinha mais filhinhos e gostava de ir fazer carinho nos filhinhos... Às vezes também Joãozinho fugia só para ficar olhando as coisas, já que ninguém levava ele para passear. Nessa hora é virava mesmo um coelho pensante (LISPECTOR, 1999, s/p). Assim, leitor e narradora buscam desvendar mistérios ao longo da história: o leitor nas tentativas de descobrir o motivo das fugas do coelho; a narradora, diante da construção escrita de um mistério que deve ser mantido mesmo após o final da história. Enfim, O mistério do coelho pensante se constitui como uma permanente brincadeira, cujo maior mistério é ser capaz de imaginar, criar vínculos entre o que se escreve e o que se ler, “ouvir” com atenção o que as entrelinhas desvelam. A história apresenta uma dialética entre a fantasia e a realidade. A metáfora das fugas do coelho da gaiola nos induz a pensar na fuga para o universo da fantasia, assim como o coelho de Alice no país das maravilhas também fazia. Clarice leva o leitor infantil a questionar, não só o fato de o coelho conseguir sair da prisão, mas o que fazer quando se encontra em liberdade. Essa proposição pode ser conformada por uma estratégia de leitura ou contação de história que permitem um exercício de imaginação e assimilação da realidade pela criança. Em Quase de verdade temos a narrativa da viagem feita por um cachorro ao quintal do vizinho que, ao retornar, relata para sua dona Clarice, através de latidos, que ela compreende e traduz: “Eu fico latindo para Clarice e ela – que entende o significado dos meus latidos – escreve o que eu lhe conto” (LISPECTOR, 1985, s/p). O cachorro Ulisses é protagonista da história que, de forma criativa, apresenta dois narradores, sendo Clarice o narrador secundário que traduz para o leitor os relatos de Ulisses. O mundo ficcional da narrativa, ao apresentar um cachorro falante, torna a recepção mais lúdica e divertida para a criança. Nesse conto, a autora utiliza construções linguísticas inusitadas e mesmo inexistentes na Lingua Portuguesa, transformando substantivos em verbos, numa estratégia lúdica de aproximar-se do universo infantil: “Os homens homenzavam, as mulheres mulherizavam, os meninos e meninas meninizavam, os ventos ventavam, a chuva chuvava, as galinhas galinhavam, os galos galavam a figueira figueirava, os ovos ovavam. E assim por diante” (LISPECTOR, 19085, s/p). Compreende-se essa construção linguística como uma forma lúdica de aproximar-se do universo infantil. Trata-se de uma narrativa que se aproxima da composição organizacional de uma fábula e utiliza, no inicio, as expressões próprias do conto tradicional: “Era uma vez... Era uma vez: eu! Mas aposto que você não sabe quem eu sou. Prepare-se para uma surpresa que você nem adivinha. Sabe quem eu sou? Sou um cachorro chamado Ulisses e minha dona é Clarice” (LISPECTOR, 1985, s/p). Em todo contexto da narrativa, há convites para “ouvir o texto” através do uso de onomatopeias, uma vez que Ulisses latia, os galos e galinhas cacarejavam, os passarinhos cantavam, além dos ruídos que ocorriam no quintal que o cachorro visitava. “E toca os ovos a caírem. Cada ovo que caía, fazia no chão o seguinte barulho: Pló-quiti, pló-quiti, pló-quiti” (s/p). A história contada por Ulisses a sua dona, por vezes também apresenta marcas de oralidade, que aproximam a narrativa de um conto que os pais improvisam para fazer a criança dormir. Há o uso de onomatopeias indicativas de que o contador da história está construindo o que vai dizer a seguir: - Está ouvindo agora mesmo um passarinho cantando? Se não está, faz-de-conta que está. É um passarinho que parece de ouro, tem bico vermelh0-vivo e está muito feliz da vida. Para ajudar você a inventar a sua pequena cantiga, vou lhe dizer como ele canta. Canta assim: pirilin-pin-pin, pirilin-pin-pin, pirilin-pin-pin. Esse é o pássaro de alegria. Quando eu contar a minha história, vou interrompê-la às vezes quando ouvir o passarinho (LISPECTOR, 1985, s/p). A frequente interlocução entre o cachorro Ulisses e sua dona Clarice também convida o leitor infantil a partilhar a narrativa em vários momentos, estratégia estilística que é possível observar, até mesmo no final da história: [...] Você criança, pergunte isso à gente grande. Enquanto isso eu digo: - Au, au, au! E Clarice entende o que eu quero dizer: - Até logo, criança! Engole-se ou não se engole o caroço? Eis a questão.LISPECTOR, 1985, s/p). PERTO DO CORAÇÃO DO LEITOR INFANTIL: UM CONVITE PARA “OUVIR O TEXTO” – Cecília Bajour, pesquisadora argentina, em livro Ouvir nas entrelinhas: o valor da escuta nas práticas de leitura (2012), discute a concepção dialógica da leitura que necessita de uma “escuta atenta às entrelinhas” através da mediação da leitura, estratégia imprescindível à formação do leitor, quer seja em ambientes escolares ou não. Para ela o professor, enquanto mediador, deve, além de escutar o texto, nutrir-se de leituras várias para, junto ao aluno, formular perguntas instigantes, acompanhar o pensamento do leitor e construir os sentidos do texto. Um aluno que tem um histórico de oportunidades de mediação de leitura de textos é capaz de “ouvir” as entrelinhas e expor a sua apreciação sobre si mesmo e sobre o outro. “Escutar”, para a autora, é uma prática que se constrói, que se aprende. E o que depreendemos da leitura dos dois contos de Clarice que abordamos, neste trabalho, é exatamente esse convite que ela faz, para que a criança ouça suas narrativas e delas participe, intervindo e interagindo durante toda história, ora formulando hipóteses sobre a ação da personagem, como é no caso das fugas do coelho, ora “ouvindo” os latidos do cachorro, traduzidos por sua dona. Para Cecilia Bajour, uma conversa literária, tomando como exemplo, a que Clarice desenvolve com o leitor, nas obras infantis supracitadas, estimula perguntas, silêncios, gestos, impressões pessoais que partem da real “escuta das entrelinhas”. Cecília Bajour também critica a “espetacularização” da leitura que muitas vezes é apresentada através de “animação”, usada como “show”, performances e adereços e acrescenta que a leitura, dentro ou fora da escola, deve sim, valorizar esteticamente o texto. Retomando os contos infantis clariceanos, percebemos que os recursos estilísticos usados mantêm o leitor numa permanente conversa com a narradora que partilha as palavras num encontro intersubjetivo, que aceita o outro em suas diferenças e visão de mundo, construindo significados sem necessidade de concluí-los. Para Bajour, essa é a condição fundamental da escuta. Ainda nessa linha de discussão de “escuta do texto”, trazemos as considerações de Dany A. Kannan, em seu livro Escuta subjetivação: a escritura de pertencimento de Clarice Lispector. Para esse autor, a “escuta psicanalítica” é a que se estabelece de inconsciente para inconsciente, na relação analítica: “[...] um saber inconsciente é transferido para um outro sujeito ao qual se supõe o saber; sujeito este que deve colocar-se num estado de disponibilidade (garantido pela atenção flutuante) para escutar o que lhe é comunicado [...] (KANAAN, 2002, p. 30). A partir dessa constatação sobre a escuta do texto, o crítico literário considera que o leitor escuta o texto literário e o interpreta, enquanto que o psicanalista escuta o analisando e o interpreta, ou seja, ambos os movimentos se inscrevem na noção de escuta do texto. Poderíamos, aqui, retomar os contos infantis analisados anteriormente e pensar que a narrativa clariceana produz sentido não apenas pelo que está implícito nas entrelinhas, mas nas entrelinhas da interação com o leitor infantil, ou ainda, pelas múltiplas interlocuções que a leitura propicia. Kanaan é um estudioso da obra de Clarice Lispector e recolhemos, dele, este fragmento que reafirma as considerações que fizemos ao longo deste trabalho? Clarice, desse modo, rompe com o pacto literário, segundo o qual um texto deve ser apenas lido. Para ela, o texto, como texto de uma existência, deve ser escutado no ato da leitura, recuperando suas marcas orais, aquelas que colocariam os signos em movimento contínuo. É somente nessa dimensão que o sujeito poderia se reconhecer-realizar como tal (KANAAN, 2002, p. 169). Assim, para Kanaan, Clarice amplia a dimensão do ato de ler para a escuta do texto, sobretudo porque as marcas da oralidade passam a ser visíveis e enriquecem a sua compreensão. CONSIDERAÇÕES FINAIS: Impossível considerar este trabalho como conclusivo, uma vez que Clarice Lispector é uma fonte perene e inesgotável de leituras. Trata-se, portanto, de mais um texto acadêmico não sobre a extensa obra clariceana, mas, especificamente sobre dois contos infantis, nos quais abordamos aspectos, muitas vezes desconhecidos por educadores, quais sejam, pais e professores, que poderiam mediar as referidas histórias dirigidas ao público infantil. As obras analisadas sugerem um espaço de convivência leitora entre adulto e criança, promovendo um encontro com um universo ficcional lúdico e brincante. As personagens coelho e cachorro permitem a recriação da infância, que também é a infância de Clarice, num permanente jogo do faz de conta, atraindo o leitor infantil para situações inusitadas e que exigem a sua intervenção crítica e reflexiva diante da fantasia e da realidade. O aporte teórico, sobre a concepção de “escuta do texto”, dirige o leitor para desvendar os sentidos implícitos nas entrelinhas, através da mediação de leitura aludida por Cecilia Bajour, bem como a leitura psicanalítica explicitada por Dany Kannan, dão consistência aos propósitos deste estudo ao tempo em que nos conduz a perceber a desconstrução da relação de poder do adulto diante da criança, invertendo papéis e privilegiando o olhar infantil sobre a história narrada. Deste modo, a narradora investe-se de criança, aproxima-se do leitor infantil e distancia-se do papel hegemônico do adulto. Enfim, a obra de Clarice, dedicada à criança, apresenta uma autora que não tem pretensão de adultizar as crianças, mas de conduzi-las a experimentar um universo ficcional que a fantasia permite e é permanente recriado pela imaginação. REFERÊNCIAS. BAJOUR, Cecilia. Ouvir nas entrelinhas: o valor da escuta nas práticas de leitura. São Paulo: Pulo do Gato, 2021. KANAAN, Dany. Escuta e subjetivação: a escritura de pertencimento de Clarice Lispector. São Paulo: Casa do Psicólogo/EDUC, 2002. LISPECTOR, Clarice: A paixão segundo GH (Rocco, 2009); Quase de verdade (Rocco, 1985), O mistério do coelho pensante (Rocco, 1999), A descoberta do mundo (Nova Fronteira, 1984). Este artigo é a reelaboração de uma palestra proferida na Jornada Psicanálise e Literatura, realizada pelo Traço Freudiano Veredas Lacanianas, em 23 de março de 2019, e extraído da obra Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura (FAFIRE/BAGAÇO, 2019), organizado por Liliane Maria Jamir e Silva, com as colaboradoras: Maria das Graças Vieira Lins, Nelma Menezes Soares de Azevedo e Vilani Maria de Pádua.

 


GRAÇA LINS – Graça Lins é escritora e pesquisadora da Literatura Infantil e Juvenil, graduada em Letras, pós-graduada em Literatura Brasileira e em Políticas Culturais, mestre em Psicanálise, e crítica literária pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (RJ). É autora do livro Ozybil engole letras (Bagaço, 1995) do conto De amores e de Livros (Entre Laços), e articulista da Revista Brazilcomz (Espanha). Coordenou as ações culturais da biblioteca do Porto Digital e atualmente é professora dos cursos de pós-graduação em Literatura da FAFIRE/PE, integrante da Oficina de Criação Literária Clarice Lispector, desde 2018.

 


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