Saturday, February 02, 2013

LENDAS DO NORDESTE: A SERPENTE DE ASAS



Ilustração de J. Lanzellotti.


A SERPENTE DE ASAS


Ao findar o jantar naquela noite, a meninada afoita procurou por Tia Conça.

- Tia Conça, conta uma história de terror! -, pediu-lhe Nitolino.

-  De terror?

- Siiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiim! -, responderam todos.

- A do lobisomem zonzo?

- Não.

- Oxe, não querem uma história assim da amizade dos bichos?

- Não! Queremos uma história de terror, daquelas bem arrepiadas que metam medo, mas muito medo mesmo, na gente!

- Ah, então tá. Uma história de terror.... deixe ver... era uma vez que um rapaz e uma moça de famílias muito ricas resolveram se casar. Foi uma festança enorme com muito luxo e riqueza. Com o passar dos meses nasceu um filhinha muito bonitinha e que era o centro da atenção de todos. Essa menininha foi crescendo e tudo que queria os pais lhe dava. Não podia ver um brinquedo do vizinho que logo ela esperneava pros pais comprarem. Ela tinha de tudo e mais queria. Queria roupas, festas, tudo. E os pais lhe davam. Quando estava quase moça, os pais ficaram arruinados, empobreceram e morreram. Ela ficou sozinha, mas como era rica e bonita, nem ligou. Ela só não contava que o dinheiro se acabasse e toda riqueza dela chegasse ao fim. Foi aí que quando se viu arruinada, logo teve uma ideia de viver da sua beleza, já que era muito bonita. E como muitos homens a cortejavam, ela usou do expediente de manipulá-los com todos os truques e trapaças. Ela simplesmente inventava disse-me-disse de que João odiava José promovendo uma briga entre ambos. Doutra feita aconselhou José a tirar satisfações com Manoel, logo brigaram feio. Manoel foi induzido por ela a se desentender com Joaquim e fez deste inimigo do Serafim que brigou com o padre que arengou com o prefeito que se desentendeu com o juiz que foi às vias de fato com o delegado que se intrigou do bispo que denunciou o motorista que trocou tapas com João que odiava José. E com esses ardis, ela providenciava o seu sustento amealhando alguma fortuna para manutenção da sua vida suntuosa.

O tempo passava e disso vivia, quando deu conta de que a vida fez dela envelhecer.

Ah, aí, ao tomar pé da velhice, logo providenciou tantas escaramuças quanto pôde enredar entre as pessoas do seu relacionamento, tudo com o fito de financiar suas cirurgias plásticas, uma aparatosa rede de cosméticos para manter sua beldade e uma variedade de artigos para embelezamento geral. A vaidade, o egoísmo, a avareza e a soberba tomavam conta do seu ser, a ponto de torná-la irreconhecível de tanta produção na sua feitura. Mesmo com as intervenções cirúrgicas constantes, ao cabo de poucos dias logo a idade desarrumava suas feições e jeitos. E mais ela se amargurava, torna-se cruel e amaldiçoava a vida e todas as pessoas.

Um dia lá, totalmente tomada pela ira, blasfemou e atentou contra tudo e jurando se vingar de todos os moradores da cidade. Seu furor incontrolável, por fim, transformou-a numa serpente de asas temida. Qualquer desavisado que se aproximasse dos seus domínios, ela devorava jamais saciando sua fome e sede de atacar as pessoas para manter seu ser sempre robusto e formoso.

Ainda hoje ela vive atormentando os passantes e quando a fome bate ela sai rondando as casas pra caçar ser vivente que lhe sirva de alimento.

Para não ser comido pela serpente de asas é preciso a pessoa estar diligente de cumprir seus deveres e ter sempre um livro à mão. É que ela é vulnerável a livros, coisa que a faz morrer. Quando ela avista um livro, ela foge temerosa. Por isso quando ela se defronta com uma pessoa digna portando um livro, logo ela se afasta para se esconder na Gruta do Serrote da Lapa.

E assim entrou pela perna de pinto, saiu pela perna de pato, menino que não for dormir vai virar um carrapato.

Ao narrar essa horrorosa história Tia Conça convocou todos os meninos pra dormir. Contudo, todos ficaram com seus olhos grandões e amedrontados sem conseguir sair do lugar.

Quando ela se retirou pro quarto, Nitolino chamou os outros para terem com Pai Lula.

Ao encontrá-lo, alegaram:

- Pai Lula, a gente tá com medo de dormir pra serpente de asas não pegar a gente -, disse Nitolino com a cara medrosa de todos os meninos.

Pai Lula foi até a biblioteca e entregou um livro para cada criança. E disse:

- Podem ir dormir que menino com livro a serpente de asas não ataca. Mas vocês precisam ser dignos, nunca mentir, nem enganar, nem ter inveja, nem fazer intriga, sempre fazer os deveres da escola, ouvir e praticar o que recomendam todos os mais velhos. Tendo cumprido esses deveres e com um livro na mão a serpente de asas nunca atacará vocês.

- Tá certo! -, disse Nitolino arregimentando os demais para o quarto de dormir.

Quando os meninos saíram, Pai Lula explicou que a serpente de asas é uma lenda oriunda do Portugal de antanho, existente pelas bandas de Vilamoura, no Algarve. Essa lenda dava conta de que uma cobra muito grande e velha criara asas, em referência à encantada Moura-serpente, ou moura-cobra, que surgia metade mulher, metade animal na lenda da serpente de Noudar, ou do Monte d´Assaia e em outras lendas e encantamentos.

No Brasil, ela faz parte do conjunto lendário do Rio São Francisco, principalmente na cidade baiana de Bom Jesus da Lapa, onde o povo ouvia o ronco cavernoso e ameaçador da Cova da Serpente no Serrote da Lapa.

É ainda registrado que no morro do Votupoca, na cidade paulista de Sete Barras, a serpente de asas atacava animais e que desapareceu quando um benzedeiro foi trazido para dar cabo dela.

Também diz uma lenda Jequi que se essa serpente tocar a pessoa, ela secará até definhar na morte.

Essa serpente é conhecida pelo nome de Jequitiranabóia que também é nomeada em diversos lugares como jaquiranambóia,tirambóia, cobra-de-asa, cobra-do-ar, entre outras denominações.

FONTES:
CASCUDO, Luís da Câmara. Geografia dos mitos brasileiros. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EdUsp, 1983.
DANTAS, Paulo. Estórias e lendas do Norte e Nordeste: A serpente de asas. São Paulo: Edigraf, s/d.
LINS, Wilson. O médio São Francisco: uma sociedade de pastores e guerreiros. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1983.
NEVES, Zanoni. Navegantes da integração: os romeiros do rio São Francisco: Belo Horizonte: UFMG, 1998.
______. Os romeiros do rio São Francisco. São Paulo: Saraiva, 2004.
SAMPAIO, Teodoro. O rio São Francisco. São Paulo: Escolas Profissionais Salesianas, 1905.
SEGURA, Turibio Vilanova. Bom Jesus da Lapa. Bahia: Mensageiro da Fé, 1943.

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