DESENVOLVIMENTO INFANTIL – Entende Luria ao
escrever sobre a psicologia experimental e o desenvolvimento infantil, tratando
sobre o desenvolvimento da percepção infantil em relação ao mundo exterior, que
durante os primeiros meses de vida uma criança não percebe formas distintas e
por isso é incapaz de acomodar, de qualquer forma que seja seu comportamento a
elas. Um certo número de pesquisas cuidadosa e objetivamente executados mostrou
que uma criança passa as primeiras semanas de vida em um estado difuso entre o
sono e a vigília. Esse estado primitivo, semissonolento,, e o total de
isolamento da criança em relação ao mundo que a cerca são ainda mais exagerados
pelo fato de que os receptores necessários para perceber o mundo exterior não
começam a operar até bem mais tarde. A conclusão é que até os três ou quatro
meses, a criança é uma espécie de cego mental e não percebe o mundo exterior
sob qualquer forma distinta. De fato, esta natureza caótica e embaçada de
percepção infantil ainda se prolonga por muitos meses. À medida que o tempo
passa, porém, a criança começa a perceber vultos e formas, e esta capacidade
torna-se uma das mais importantes condições para o organismo, a adaptação sem a
qual seria impossível qualquer progresso ulterior. A habilidade para discriminar um elemento individual
dentro de uma forma percebida é tarefa bastante complexa para a criança,
ocorrendo só após o desenvolvimento de uma habilidade que a levará a ser capaz
de utilizar formas complexas de pensamento que requerem a habilidade de isolar,
à vontade, os elementos individuais, abstraí-los e operar com eles com relativa
facilidade. Observa-se que o caminho percorrido pela percepção infantil vai da
percepção caótica, difusa, para uma relação simples, totalizante com as formas,
para uma complexa acomodação à elas. Acomodação que se faz por mediação,
combinando os traços totalizantes com relativa facilidade de discriminação dos
elementos individuais.
Tratando acerca do desenvolvimento dos
hábitos culturais da criança, Luria começa a tratar pelo desenvolvimento do
processo de contagem, cônscio de que as habilidades e os conceitos abstratos
necessários para a contagem desenvolveram-se muito tarde, depois de a criança
ter começado a ir à escola. Em suas brincadeiras a criança de quatro a cinco
anos deveria dividir um certo número de objetos entre três ou quatro colegas. Logo
descobriu-se que as crianças acomodavam-se a esse problema de várias formas. As
mais jovens e as mais retardadas tentavam dividir diretamente a pilha de blocos
ou fichas, sem o uso de qualquer técnica auxiliar. Esse foi o primeiro estágio
simples de acomodação ao problema da divisão. O processo de divisão é modelado
diferentemente em crianças um pouco mais, de cinco anos, por exemplo, quando o
processo de acomodação direta torna-se diferenciado em um certo número de
operações sucessivas que a criança adquire um certo número de técnicas
sintéticas para auxiliar a divisão e que ela inventa, pela primeira vez, alguma
forma cultural para lidar com essa complicada tarefa. Nota-se um fenômeno peculiar
na criança dessa idade: ela não age diretamente para dividir as peças entre
seus colegas, mas começa executando uma série de operações que a ajudem a
efetuar a divisão, de maneira mais precisa. Ela começa a fazer arranjos com os
blocos ou fichas para, em seguida, distribuí-las entre seus amigos. Ainda incapaz
de contar abstratamente ou de lidar com o conceito de numero, a criança elabora
pequenas técnicas auxiliares que a habilitam a resolver um problema, de outra
forma indissolúvel. Com isso, a criança
ingressou, definitivamente, um segundo estágio no desenvolvimento de sua
habilidade de contar. Este estágio de aritmética primitiva é marcado pelo fato
de que o processo de divisão é agora indireto; ele ocorre com o auxilio de uma
série de operações auxiliares e para as noções abstratas de quantidade, ainda
faltantes, a utilização funcional de um certo numero de formas concretas serve
como substituto. No entanto, o desenvolvimento da contagem da criança não para
por aí, é que nesse estágio, uma mudança peculiar ocorre nos experientes que a
criança emprega para contar: em vez de construir figuras com blocos e depois
distribuí-las entre os seus colegas, ela dispõe as peças em certa ordem
especial e, em seguida, distribui o numero requerido de tais arranjos a cada um
de seus colegas. A evolução total das habilidades aritméticas é ilustrada pelas
diferentes atitudes que aparecem em diferentes estágios, pelos quais passa uma
criança em relação ao resto de um problema da divisão. Em um primeiro estágio,
distingue-se a fase da divisão direta, primitiva quando não há restos. A criança
é capaz de enfrentar um resto só no próximo estágio, quando começa a empregar
as figuras espaciais, mas é só quando a contagem abstrata está plenamente
desenvolvida, durante o período escolar, que ela irá dominar integralmente o
problema do resto. Observando em que ordem tais expedientes aparecem,
compreende-se que os passos do processo pelo qual a criança desenvolve as
habilidades culturais para contar e, uma vez mais, descobrir provas eficazes do
tremendo e excepcional esforço que essa criaturinha precisa fazer antes de ser
capaz de executa, fácil e automaticamente, operações numéricas que nos parecem
tão simples e fáceis.
Quanto ao desenvolvimento da escrita, observa
Luria que escrever é uma das funções culturais típicas do comportamento humano,
pressupondo o uso funcional de certos objetos e expedientes como signos e símbolos.
Essa habilidade desenvolve-se funcionalmente bastante tarde na criança e, no período
pré-escolar, pode-se observar que é um estágio fora do seu alcance. Quando uma
criança entra na escola, ela não é uma tabula rasa que possa ser moldada pelo
professor segundo a forma que ele preferir. Essa placa já contem as marcas
daquelas técnicas que a criança usou ao aprender a lidar com os complexos
problemas de seu ambiente, já equipada e já possui suas próprias habilidades
culturais. Mas esse equipamento é primitivo e arcaico, não foi forjado pela
influencia sistemática do ambiente pedagógico, mas pelas próprias tentativas
primitivas feitas pela criança para lidar, por si mesma, com tarefas culturais.
Psicologicamente a criança não é um adulto em miniatura, ela modela sua própria
cultura primitiva.
Ao tratar do desenvolvimento da escrita na
criança, Luria observa que tudo começa muito antes da primeira vez em que o
professor coloca um lápis em sua mão e lhe mostra como formar letras. As origens
do processo da escrita remontam período anterior, ainda na pré-história do
desenvolvimento das formas superiores do comportamento infantil, uma vez que
quando ela entra na escola ela já adquiriu um patrimônio de habilidades e
destrezas que a habilitará a aprender a escrever em um tempo relativamente
curto. Para uma criança ser capaz de
escrever ou anotar alguma coisa, duas condições devem ser preenchidas: em
primeiro lugar, as relações da criança com as coisas a seu redor devem ser
diferenciadas de forma que tudo o que ela encontra inclua-se em dois grupos
principais: 1 ou as coisas representam algum interesse para a criança, coisas
que gostaria de possuir ou com as quais brinca; 2 ou os objetos são
instrumentais, desempenhando apenas um papel instrumental ou utilitário, e só
tem sentido enquanto auxilio para a aquisição de algum outro objeto ou para
obtenção de algum objetivo e, por isso, possuem apenas um significado funcional
para ela. Em segundo lugar, a criança deve ser capaz de controlar seu próprio comportamento
por que ela mesma invoca. Só quando as relações da criança com o mundo que a
cerca se tornaram diferenciadas dessa maneira, quando ela desenvolveu sua
relação funcional com as coisas, é que se pode dizer que as complexas formas
intelectuais do comportamento humano começaram a se desenvolver. Observa ainda
Luria que antes que a criança tenha compreendido o sentido e o mecanismo da
escrita, já efetuou inúmeras tentativas para elaborar métodos primitivos, e
estes são, para ela, a pré-história da escrita. Mas mesmo esses métodos não se
desenvolvem de imediato: passam por um certo numero de tentativas e invenções,
constituindo uma série de estágios, com os quais deve familiarizar-se o
educador que está trabalhando com elas na idade escolar, pois isso lhe será
muito útil. A criança de três a quatro anos descobre primeiramente que seus
rabiscos no papel podem ser usados como auxilio funcional na recordação. Nesse momento,
a escrita assume uma função instrumental auxiliar, e o desenho torna-se a
escrita por signos. Ao mesmo tempo, à medida que esta transformação ocorre, uma
reorganização fundamental ocorre nos mecanismos mais básicos do comportamento
infantil: no topo das formas primitivas da adaptação direta aos problemas
impostos por seu ambiente, a criança constrói novas e complexas formas culturais;
as mais importantes funções psicológicas não mais operam por meio de formas
naturais primitivas e começam a empregar expedientes culturais complexos. Estes
expedientes são tentados sucessivamente e aperfeiçoados e no processo a criança
se transforma. Observa-se o processo crescente de desenvolvimento dialético das
formas complexas e essencialmente sociais de comportamento, as quais, após
percorrerem longo caminho, acabaram por conduzir finalmente ao domínio do que é
talvez o mais inestimável instrumento da cultura.
REFERÊNCIA
VIGOSTSKII, L.; LURIA, A.; LEONTIEV, A.
Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ícone, 2012.