Imagem: arte de Lú Karyry
Luiz Alberto Machado*
Um dia menino, à sombra bondosa de um
carregado cajueiro, a vida sorria e eu conversava sozinho coisas que saltavam
das sensações.
As ideias levavam meu coração a dar voltas
por todos os lugares, até me entreter com um galo lá longe, todo amostrado no
terreiro, desde que o dia acontecera: uma felicidade que me contagiava todas
manhãs de sempre.
Já era de tarde e o galo orgulhoso de si lá
cocoricava como se fosse domingo de festa. Assim, entretido com todo seu
ciscado tomava pé de toda boniteza das coisas dali.
Logo desaparecera e eu fiquei no ora, ora:
Cadê-lo? Foi pra onde?
Ousei levantar a buscá-lo e uma voz diferente
interrompeu minha saída:
- Curumin, que é que há? -, a voz deixou-me
ali espantado. E ainda fez um convite: - Chega!
Quem era? Parecia mesmo que era do cajueiro o
que ouvi:
- Senta, vamos prosear! A tarde está tão
linda...
Era mesmo dele aquela estranheza. Sim, pois.
É que até então ele e todas as árvores só me ouviam; agora minha vez de escutá-lo.
E me agachei atencioso: Diga lá!
Era como se fosse um uma voz do além a me
contar dos segredos mais íntimos das coisas, o que saía e entrava pelos sete
buracos da cabeça de gente. Como assim? E me falou da maior profundeza das
coisas escondidas: que a Terra é a nossa Mãe, nosso abrigo; e a nossa família,
todos ao nosso redor, assim como tudo e todas as coisas.
E mais disse para que eu sentisse o cheiro de
Sol por todos os lugares inundados pelo perfume das flores e elas abanando
alegres nos galhos: o ar era avida que nos fazia existir soprando a raiz de
todos os ventos, o prazer das brisas que levavam e traziam o gosto mais
maravilhoso de viver. E que sopravam o fogo ensinando tudo o que passou e o que
virá, como se vingassem o céu com a fumaça das altas fogueiras, lambendo as
estrelas maduradas na noite pela viagem de outro dia, que depois viria, quando
menos se esperasse. Inspiravam o rio na metáfora do espelho e mexiam as
correntes das águas regando o chão, como sobem as marés – o encontro do rio ao
mar era a vidada gente, porque há um lugar e um tempo, pedaços de hestórias de semear
e de colher, de fazer e sonhar. Conduziam as nuvens que choravam de alegria
lavando a alma grata pela comida, pelo abrigo, pela claridade, pelo trabalho e
pela dança dos espíritos invisíveis –os guardiões da herança de todas as
estações e o respeito recíproco na boa-fé do coração puro.
As palavras pareciam soltas e soavam de
dentro pro íntimo e era preciso silêncio para senti-las, sim: era o milagre da
revelação do Grande Espírito.
De repente o galo reapareceu do nada para
atrapalhar tudo e, pela primeira vez, entendi seu cocoricó: convocava o coro de
todas as pedras e alturas, todos os troncos e plantas, todos os morros e estradas,
todas as grutas e cachoeiras, todos daqui de perto e de lá longe, todos os que
voam e os que rastejam, enfim: o coro da celebração vital.
Sim. Cantavam que todos temos uma missão:
proteger a Mãe Terra e tudo que nela há! E eu felizardo também cantei bebendo
da chuva, como se aprendesse devoto das águas a gratidão dos nascidos e com
todas as graças do coração a segui-las sempre adiante horizonte afora.
Assim sou e estou.
* Texto extraído da publicação 11.645 indígenas e
diversidade pela paz (Thydewa – Escola Livre Abya Yala, 2024).
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