Ilustração de J. Lanzellotti.
A SERPENTE DE ASAS
Ao findar o jantar naquela noite, a
meninada afoita procurou por Tia Conça.
- Tia Conça, conta uma história de
terror! -, pediu-lhe Nitolino.
- De terror?
- Siiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiim! -, responderam
todos.
- A do lobisomem zonzo?
- Não.
- Oxe, não querem uma história assim da
amizade dos bichos?
- Não! Queremos uma história de terror,
daquelas bem arrepiadas que metam medo, mas muito medo mesmo, na gente!
- Ah, então tá. Uma história de
terror.... deixe ver... era uma vez que um rapaz e uma moça de famílias muito
ricas resolveram se casar. Foi uma festança enorme com muito luxo e riqueza.
Com o passar dos meses nasceu um filhinha muito bonitinha e que era o centro da
atenção de todos. Essa menininha foi crescendo e tudo que queria os pais lhe
dava. Não podia ver um brinquedo do vizinho que logo ela esperneava pros pais
comprarem. Ela tinha de tudo e mais queria. Queria roupas, festas, tudo. E os
pais lhe davam. Quando estava quase moça, os pais ficaram arruinados,
empobreceram e morreram. Ela ficou sozinha, mas como era rica e bonita, nem
ligou. Ela só não contava que o dinheiro se acabasse e toda riqueza dela chegasse
ao fim. Foi aí que quando se viu arruinada, logo teve uma ideia de viver da sua
beleza, já que era muito bonita. E como muitos homens a cortejavam, ela usou do
expediente de manipulá-los com todos os truques e trapaças. Ela simplesmente
inventava disse-me-disse de que João odiava José promovendo uma briga entre
ambos. Doutra feita aconselhou José a tirar satisfações com Manoel, logo
brigaram feio. Manoel foi induzido por ela a se desentender com Joaquim e fez
deste inimigo do Serafim que brigou com o padre que arengou com o prefeito que
se desentendeu com o juiz que foi às vias de fato com o delegado que se
intrigou do bispo que denunciou o motorista que trocou tapas com João que
odiava José. E com esses ardis, ela providenciava o seu sustento amealhando
alguma fortuna para manutenção da sua vida suntuosa.
O tempo passava e disso vivia, quando deu
conta de que a vida fez dela envelhecer.
Ah, aí, ao tomar pé da velhice, logo
providenciou tantas escaramuças quanto pôde enredar entre as pessoas do seu
relacionamento, tudo com o fito de financiar suas cirurgias plásticas, uma
aparatosa rede de cosméticos para manter sua beldade e uma variedade de artigos
para embelezamento geral. A vaidade, o egoísmo, a avareza e a soberba tomavam
conta do seu ser, a ponto de torná-la irreconhecível de tanta produção na sua
feitura. Mesmo com as intervenções cirúrgicas constantes, ao cabo de poucos
dias logo a idade desarrumava suas feições e jeitos. E mais ela se amargurava,
torna-se cruel e amaldiçoava a vida e todas as pessoas.
Um dia lá, totalmente tomada pela ira,
blasfemou e atentou contra tudo e jurando se vingar de todos os moradores da
cidade. Seu furor incontrolável, por fim, transformou-a numa serpente de asas
temida. Qualquer desavisado que se aproximasse dos seus domínios, ela devorava
jamais saciando sua fome e sede de atacar as pessoas para manter seu ser sempre
robusto e formoso.
Ainda hoje ela vive atormentando os
passantes e quando a fome bate ela sai rondando as casas pra caçar ser vivente
que lhe sirva de alimento.
Para não ser comido pela serpente de asas
é preciso a pessoa estar diligente de cumprir seus deveres e ter sempre um
livro à mão. É que ela é vulnerável a livros, coisa que a faz morrer. Quando
ela avista um livro, ela foge temerosa. Por isso quando ela se defronta com uma
pessoa digna portando um livro, logo ela se afasta para se esconder na Gruta do
Serrote da Lapa.
E assim entrou pela perna de pinto, saiu
pela perna de pato, menino que não for dormir vai virar um carrapato.
Ao narrar essa horrorosa história Tia
Conça convocou todos os meninos pra dormir. Contudo, todos ficaram com seus
olhos grandões e amedrontados sem conseguir sair do lugar.
Quando ela se retirou pro quarto,
Nitolino chamou os outros para terem com Pai Lula.
Ao encontrá-lo, alegaram:
- Pai Lula, a gente tá com medo de dormir
pra serpente de asas não pegar a gente -, disse Nitolino com a cara medrosa de
todos os meninos.
Pai Lula foi até a biblioteca e entregou
um livro para cada criança. E disse:
- Podem ir dormir que menino com livro a
serpente de asas não ataca. Mas vocês precisam ser dignos, nunca mentir, nem
enganar, nem ter inveja, nem fazer intriga, sempre fazer os deveres da escola,
ouvir e praticar o que recomendam todos os mais velhos. Tendo cumprido esses
deveres e com um livro na mão a serpente de asas nunca atacará vocês.
- Tá certo! -, disse Nitolino
arregimentando os demais para o quarto de dormir.
Quando os meninos saíram, Pai Lula
explicou que a serpente de asas é uma lenda oriunda do Portugal de antanho, existente
pelas bandas de Vilamoura, no Algarve. Essa lenda dava conta de que uma cobra
muito grande e velha criara asas, em referência à encantada Moura-serpente, ou
moura-cobra, que surgia metade mulher, metade animal na lenda da serpente de
Noudar, ou do Monte d´Assaia e em outras lendas e encantamentos.
No Brasil, ela faz parte do conjunto
lendário do Rio São Francisco, principalmente na cidade baiana de Bom Jesus da
Lapa, onde o povo ouvia o ronco cavernoso e ameaçador da Cova da Serpente no Serrote
da Lapa.
É ainda registrado que no morro do
Votupoca, na cidade paulista de Sete Barras, a serpente de asas atacava animais
e que desapareceu quando um benzedeiro foi trazido para dar cabo dela.
Também diz uma lenda Jequi que se essa
serpente tocar a pessoa, ela secará até definhar na morte.
Essa serpente é conhecida pelo nome de Jequitiranabóia
que também é nomeada em diversos lugares como jaquiranambóia,tirambóia,
cobra-de-asa, cobra-do-ar, entre outras denominações.
FONTES:
CASCUDO, Luís da Câmara. Geografia dos
mitos brasileiros. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EdUsp, 1983.
DANTAS, Paulo. Estórias e lendas do Norte
e Nordeste: A serpente de asas. São Paulo: Edigraf, s/d.
LINS, Wilson. O médio São Francisco: uma
sociedade de pastores e guerreiros. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1983.
NEVES, Zanoni. Navegantes da integração:
os romeiros do rio São Francisco: Belo Horizonte: UFMG, 1998.
______. Os romeiros do rio São Francisco.
São Paulo: Saraiva, 2004.
SAMPAIO, Teodoro. O rio São Francisco.
São Paulo: Escolas Profissionais Salesianas, 1905.
SEGURA, Turibio Vilanova. Bom Jesus da
Lapa. Bahia: Mensageiro da Fé, 1943.
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